Preservar vínculos: uma questão estratégica


Marco Aurélio Fernandez Velloso



A crise instalou-se na sociedade. Invade tanto nossas vidas, que muitos não querem mais nem ouvir falar dela. Não nos iludamos: é crise de longo prazo. Como toda crise, tem e terá muitas conseqüências, pois penetra os mais insuspeitados recortes do cotidiano, molda nosso povo e nossa história. Mas crises passam, pessoas — e instituições —ficam: mudadas, muitas vezes feridas, algumas frágeis e alquebradas, outras muito mais fortes e confiantes e criativas.

É com elas que a vida continuará, que a história seguirá seu curso. Por isso não se deve deixar que as surpreendentes manifestações econômicas desta crise escamoteiem sua dimensão humana. Isso é vital para a análise criteriosa dos fatos, para o resgate do que pode ser resgatado, seja na superação deste momento, seja na criação do novo, a longo prazo.

Sob muitos pontos de vista, o mais agudo do que estamos vivendo tem caráter eminentemente psicossocial e institucional. Particularmente nas relações de trabalho, a interferência que a conjuntura exerce sobre a subjetividade das pessoas e as alterações que provoca na psicodinâmica das instituições, é fator de enorme importância. Intensificam-se conflitos já existentes e criam-se novas situações muito delicadas. Por isso, há reflexos de caráter psicodinâmico institucional de alcance estratégico nessa crise, pois interfere na rede de vínculos das instituições, representando restrições importantes para o planejamento e a gestão de resultados.

O objetivo deste texto é o de desenvolver reflexões sobre este tema, auxiliando na compreensão deste quadro e contribuindo com sugestões para a preservação dos vínculos nas instituições de trabalho.

 

Flaches do cotidiano

Em razão da profissão, sempre observo o comportamento das pessoas. Se destilo, sintetizando, minhas observações mais recentes, percebo que o sentimento mais comum, hoje em dia, entre as pessoas, é o de desconfortável desesperança.

Apesar do desagrado causado, em cada um de nós, pela convivência com esse sentimento, assim como com a exposição cotidiana aos conflitos e à violência que permeiam a sociedade, há um perigoso acomodamento à situação. Lembra a conduta das populações ribeirinhas frente às enchentes que as assolam: observam cuidadosamente o aumento da caudal, sentem a mudança do cheiro que as águas exalam, mas permanecem acreditando, contra todas as evidências, que a catástrofe não vai ocorrer, ou que, na pior das hipóteses, só chegará até à casa do vizinho. Há, sempre, associadas às situações de crise, atitudes de negação: evita-se reconhecer os sinais de perigo, o que permite retardar a mobilização dos recursos capazes de reduzir o impacto do flagelo. Na imaginação das pessoas, magicamente, mobilizar recursos é concretizar a catástrofe; retardar as ações de defesa, eqüivale a exorcizá-la, imobilizá-la, evitar que ocorra.

Isto está acontecendo, infelizmente, em grande número de organizações, premidas pela concorrência e comprometidas com projetos inevitáveis de re-engenharia. Há agravamento dos sinais de desintegração dos vínculos, mas há lentidão na mobilização dos recursos para corrigir o curso previsível dos acontecimentos.

Que sinais são esses? Começam pelo crescimento do grau de tensão, com matizes diferentes, nas relações entre as pessoas, pertencentes ou não à instituição. Todo mundo anda irritadiço. Por isso ocorre o aumento, a princípio imperceptível, mas progressivo, de manifestações que, em condições normais, não passariam de pequenos dissabores a serem logo esquecidos: aqui e ali, há os "bate bocas" despropositados, incremento da boataria, freqüência maior de condutas de cunho depressivo (rostos tristes, choros ocasionais, etc.). Eventualmente, surgem somatizações leves (insônias, gripes, pequenas disfunções gástricas, resultando em faltas ou atrasos justificados por desconfortos menores de saúde, ocorrência esporádica de pequenos delitos (roubos de pouca monta, atos isolados de vandalismo ou de incúria de menor gravidade), ou desentendimentos irrelevantes com clientes ou usuários da instituição.

No outro extremo, emergem súbitas rupturas de vínculo, ataques inesperados à confiabilidade interpessoal, crises de desconfiança generalizada com paralela perda de motivação, aumento de manifestações de desajuste psicológico (conflitos familiares, alcoolismo, consumo de drogas, surtos psicóticos), conflitos mais explícitos com a clientela. No limite, há casos de suicídio, de somatizações sérias (enfartes, derrames, súbito aparecimento e progressão de doenças graves, ou ocorrência de acidentes com vítimas, às vezes fatais), assim como o aparecimento dos casos de delinqüências maiores (vandalismo premeditado, chantagem, sabotagem, e até seqüestros). Fatos como estes ocorrem com crescente intensidade. Podem ocorrer a qualquer momento, bem próximos de qualquer de nós.

De outro lado, há a evidência do aumento de fatos policiais mais diretamente relacionáveis a fenômenos desta natureza. Por exemplo, a polícia militar de São Paulo tem atendido a uma média de 90 ameaças de bombas por mês, em instituições as mais diversas: de escolas a indústrias. O número de vítimas dos acidentes de trânsito equiparam-se aos de uma guerra. Ocorrem incêndios intencionais e certos atos criminosos até a pouco incomuns: sabotagens de porte maior, chantagem industrial, sem falar nos seqüestros. Há aumento dos incidentes em locais públicos, com, por exemplo, o metrô.

Enfim, há os casos notórios de impacto institucional de que tivemos conhecimento nos últimos tempos, como os da Nestlé, Balas Van Melle, Cultura Inglesa, só para citar alguns.

Crise e Anomia

Conceituemos: na base dessas manifestações está o fenômeno que os sociólogos denominam de anomia que é a perda generalizada de referências quanto a normas e valores numa sociedade. O que torna este fenômeno tão poderoso é seu caráter invasivo, próprio dos processos psicossociais de massa, já que adquirem velocidade crescente de propagação, em decorrência da retro-alimentação provocada pelas intensas ansiedades mobilizadas, ao mesmo tempo, em toda a sociedade.

A anomia pode ter conseqüências devastadoras para o imaginário, tanto social quanto individual: cria um clima subjacente de pânico, de desespero; favorece a disseminação de boatos, de desconfiança e, segundo o caso, de condutas apáticas, paranóides, ou aberrantemente delinqüentes; freqüentemente dispara dinamismos psicossociais de altíssimo potencial destrutivo, na medida em que rompe com os pressupostos básicos da solidariedade e da agregação social. Esses dinamismos têm enorme potencial para estilhaçar, ao impactarem, internamente, a rede de vínculos institucionais.

As relações sociais entre os seres humanos são produzidas e reproduzidas a cada dia, a cada hora, a cada minuto. É esta reprodução cotidiana que nos faz agir hoje como agimos ontem, e é ela que permite também a progressiva introdução de mudanças na sociedade. Em condições normais, as referências às pautas culturais funcionam como articuladoras dessa reprodução das relações sociais. Através da mediação delas os indivíduos sustentam suas expectativas de conduta, para si e para os outros, e é por esse meio que reconhecem as formas admitidas de relações e de resolução de conflitos. Essas referências exercem, portanto, importantíssimo papel na manutenção da coesão e da solidariedade, sem as quais é impossível a vida comunitária. Sua perda generalizada desorganiza totalmente este processo de reprodução das relações sociais. Em muitas circunstâncias, chega mesmo a enlouquecer, de forma momentânea ou permanente, as pessoas, provocando surtos de conduta não correspondentes aos limites sociais admitidos. Isto ocorre porque a ruptura destas referências, ao remeter as pessoas, de modo abrupto, à impossibilidade de antecipação das condutas sociais — tanto das dos demais quanto da suas próprias —, leva à vivência de profunda sensação de insegurança, mobilizando ansiedades muito primitivas e de intensa força motivacional.

As circunstâncias históricas que levam à anomia numa sociedade são diversas. No entanto, todas elas têm em comum o fato de o que se perde é a própria noção de eqüidade social, único elemento capaz de nos fazer tolerar as frustrações inevitáveis que a vida social nos impõe. Em suma, é como se a civilização regredisse à barbárie.

Para sair do vórtice da anomia, a dinâmica psicossocial se desenvolve em duas direções ao mesmo tempo, uma horizontal e outra vertical: de um lado, as pessoas buscam refazer laços de solidariedade pessoal umas com as outras, em círculos cada vez mais extensos, reconstruindo, deste modo, expectativas mútuas de condutas; de outro, o grupo social como um todo procura se rearticular em busca de lideranças capazes de dar sustentação às suas expectativas de reorganização. Este é um momento muito delicado do processo, já que, no conjunto, as pessoas se encontram muito frágeis. Por isso, há o risco do aparecimento de lideranças demagógicas, as quais podem impulsionar a sociedade como um todo para direções historicamente desastrosas.

Preservação de vínculos e profilaxia institucional

Não há precedente em nossa história de anomia tão profunda, de descrédito tão universal, de tamanha perda de valores de justiça, civilidade e cidadania. Não há registro de confusão tão generalizada no encaminhamento e solução dos conflitos. Nossa secular falta de eqüidade na distribuição da riqueza tem muito a ver com isso: porque nossa crise é de ruptura da legitimidade do obsoleto pacto social de dominação que estrutura o exercício do poder em nossa sociedade, já que não garante mais nem mesmo a sobrevivência à maior parte da população. A demagogia, tanto à direita quanto à esquerda, contribui com sua absurda irresponsabilidade. A estupidez e o cinismo, neste contexto, já ultrapassam os limites toleráveis: em última análise, ninguém aceita perder absolutamente nada. Com isso, aumentamos o custo histórico das futuras soluções, escancaramos as portas para aventureiros e oportunistas, recriamos a possibilidade de uma aventura messiânica que só aumentará o preço de nosso resgate em termos de violência e destruição. O positivo, no entanto, principalmente do ponto de vista político e histórico, é que, também, nunca antes, tantos estiveram, ao mesmo tempo, tão conscientes e tão reivindicantes diante do valor nenhum que se dá aos direitos fundamentais dos cidadãos. Esta é a forma surda, nas entranhas desse processo, pelo qual ele próprio traz, em seu bojo, o gérmen de sua solução, da reparação das cicatrizes que ele próprio provoca.

Nenhuma instituição, por mais brilhante que seja sua performance nesta crise, estará isenta de suas conseqüências. Sempre será necessário atenção para a emergência, tanto no plano externo quanto interno, de eventos desviantes decorrentes da anomia do ambiente. O melhor é antecipar toda esta loucura, evitando principalmente, a ruptura de vínculos. A palavra de ordem, nestas circunstâncias, é a da lucidez em vez de violência: a loucura impõe o desafio de sua interpretação e do desvendamento de sua verdade. Freud nos ensinou que, no discurso louco, estão contidas verdades essenciais. Basta entender seu sentido. Seu método de interpretação está sustentado na compreensão de que os processos psíquicos individuais e sociais resultam da conjunção de conteúdos provenientes da realidade que se distorcem para expressar desejos inconscientes reprimidos. Este é o bom caminho para a compreensão das situações inusitadas com as quais podemos nos defrontar nesta conjuntura.

Quais as verdades contidas por trás das aparências deste contexto? Nas condições atuais, a maior necessidade subjacente nos eventos tantas vezes surpreendentes, por mais estranho que possa parecer, é a da busca da recuperação da credibilidade nos vínculos. As pessoas precisam confiar. Contraditoriamente, atacam, até, por que têm medo de serem, mais uma vez, esbulhadas em sua boa fé. É necessário, portanto, considerar seriamente a introdução de políticas bem estruturadas para garantir a credibilidade nos vínculos intra e inter-institucionais, e preservá-los. E é importante, neste sentido, ter em mente que a primeira confiança é a confiança de confessar a desconfiança. Para promover esta confiança é necessário muita paciência, continência e perseverança.

1° — Atos de delinqüência, como pequenos roubos ou gestos isolados de vandalismo: representam forma de comunicação reprimida de descontentamentos que não encontram canais de expressão. O melhor modo de lidar com isso é estruturar programas para permitir às pessoas a expressão de suas insatisfações e frustrações. É bom reduzir fatores de repressão, permitindo o grau exato de informalidade, abrindo espaço para o inter-pessoal. As pessoas privilegiam vínculos pessoais, mais confiáveis, na sua percepção, que os institucionais.

2° — Boatos e rumores: representam algo semelhante. Em alguns casos, expressam tentativas de controle, ou de exercício de pressão sobre o processo decisório, ou são testes para confirmação de hipóteses sobre o desenrolar dos acontecimentos. Mas são, sempre, mecanismos defensivos para o controle da ansiedade. Os psicólogos sociais identificaram, por exemplo, em situações como as de terremotos, que os boatos podem surgir para reduzir a dissonância cognitiva causada pelo impacto do flagelo. Para se adaptarem às situações difíceis, as pessoas costumam imaginar catástrofes ainda maiores, como que num raciocínio de Poliana. Em todo caso é importante ter em mente o princípio da guerra da contra-informação: a melhor forma de combater boatos é disseminar com clareza a informação verdadeira, e, ao mesmo tempo, evidenciar o objetivo oculto da informação falsa. Este foi o fundamento do êxito da estratégia da Nestlé diante da chantagem por ela sofrida. Inegavelmente, saiu de uma situação complicadíssima com sua imagem de credibilidade reforçada.

3° — Desentendimentos, excesso de tensão e confusão: representam outro tipo de manifestação. Nestes casos, as pessoas estão sentindo, de forma distinta, ameaças às suas condições de segurança. Isto pode provocar grande perda de motivação com queda na sinergia e na produtividade do grupo. É importante privilegiar a cooperação e não a competição. É bom lembrar que esclarecer as pessoas sobre as ameaças reais e fixar objetivos comuns, vinculando-os, objetivamente, às metas pessoais e grupais de busca de maior estabilidade e de preservação do emprego, sempre foi um método bem sucedido em situações desta natureza. O inimigo comum une o grupo e o motiva fortemente.

4° — Casos individuais de desajustes: também merecem atenção. Investigar, falar francamente com as pessoas, nunca fez mal a ninguém. As pessoas podem estar vivendo dificuldades reais que, se consideradas, e com apoio, podem ser solucionadas. No limite, não se deve hesitar em contratar profissionais especializados, capazes de abordar competentemente os casos de maior gravidade. É importante que o grupo inteiro saiba que a instituição protege o mais frágil. Isto reforça a segurança de todos.

5° — Laços com clientes e fornecedores: são também vitais. Comunicar-se com eles, abordar franca e diretamente as dificuldades, transmitindo a mensagem clara de uma política institucional de preservação de vínculos, este é um modo muito eficaz de colocar credibilidade onde faltam referências para as relações inter-institucionais.

 Artigo publicado no site do InterPsic: http://www.interpsic.com.br/saladeleitura/texto12.html , São Paulo. 1.997