A crise instalou-se na sociedade. Invade tanto nossas vidas, que muitos
não querem mais nem ouvir falar dela. Não nos iludamos: é crise de longo
prazo. Como toda crise, tem e terá muitas conseqüências, pois penetra
os mais insuspeitados recortes do cotidiano, molda nosso povo e nossa
história. Mas crises passam, pessoas e instituições ficam:
mudadas, muitas vezes feridas, algumas frágeis e alquebradas, outras
muito mais fortes e confiantes e criativas.
É com
elas que a vida continuará, que a história seguirá seu curso. Por isso
não se deve deixar que as surpreendentes manifestações econômicas desta
crise escamoteiem sua dimensão humana. Isso é vital para a análise criteriosa
dos fatos, para o resgate do que pode ser resgatado, seja na superação
deste momento, seja na criação do novo, a longo prazo.
Sob
muitos pontos de vista, o mais agudo do que estamos vivendo tem caráter
eminentemente psicossocial e institucional. Particularmente nas relações
de trabalho, a interferência que a conjuntura exerce sobre a subjetividade
das pessoas e as alterações que provoca na psicodinâmica das instituições,
é fator de enorme importância. Intensificam-se conflitos já existentes
e criam-se novas situações muito delicadas. Por isso, há reflexos de
caráter psicodinâmico institucional de alcance estratégico nessa crise,
pois interfere na rede de vínculos das instituições, representando restrições
importantes para o planejamento e a gestão de resultados.
O objetivo
deste texto é o de desenvolver reflexões sobre este tema, auxiliando
na compreensão deste quadro e contribuindo com sugestões para a preservação
dos vínculos nas instituições de trabalho.
Flaches
do cotidiano
Em razão
da profissão, sempre observo o comportamento das pessoas. Se destilo,
sintetizando, minhas observações mais recentes, percebo que o sentimento
mais comum, hoje em dia, entre as pessoas, é o de desconfortável desesperança.
Apesar
do desagrado causado, em cada um de nós, pela convivência com esse sentimento,
assim como com a exposição cotidiana aos conflitos e à violência que
permeiam a sociedade, há um perigoso acomodamento à situação. Lembra
a conduta das populações ribeirinhas frente às enchentes que as assolam:
observam cuidadosamente o aumento da caudal, sentem a mudança do cheiro
que as águas exalam, mas permanecem acreditando, contra todas as evidências,
que a catástrofe não vai ocorrer, ou que, na pior das hipóteses, só
chegará até à casa do vizinho. Há, sempre, associadas às situações de
crise, atitudes de negação: evita-se reconhecer os sinais de perigo,
o que permite retardar a mobilização dos recursos capazes de reduzir
o impacto do flagelo. Na imaginação das pessoas, magicamente, mobilizar
recursos é concretizar a catástrofe; retardar as ações de defesa, eqüivale
a exorcizá-la, imobilizá-la, evitar que ocorra.
Isto
está acontecendo, infelizmente, em grande número de organizações, premidas
pela concorrência e comprometidas com projetos inevitáveis de re-engenharia.
Há agravamento dos sinais de desintegração dos vínculos, mas há lentidão
na mobilização dos recursos para corrigir o curso previsível dos acontecimentos.
Que
sinais são esses? Começam pelo crescimento do grau de tensão, com matizes
diferentes, nas relações entre as pessoas, pertencentes ou não à instituição.
Todo mundo anda irritadiço. Por isso ocorre o aumento, a princípio imperceptível,
mas progressivo, de manifestações que, em condições normais, não passariam
de pequenos dissabores a serem logo esquecidos: aqui e ali, há os "bate
bocas" despropositados, incremento da boataria, freqüência maior
de condutas de cunho depressivo (rostos tristes, choros ocasionais,
etc.). Eventualmente, surgem somatizações leves (insônias, gripes, pequenas
disfunções gástricas, resultando em faltas ou atrasos justificados por
desconfortos menores de saúde, ocorrência esporádica de pequenos delitos
(roubos de pouca monta, atos isolados de vandalismo ou de incúria de
menor gravidade), ou desentendimentos irrelevantes com clientes ou usuários
da instituição.
No outro
extremo, emergem súbitas rupturas de vínculo, ataques inesperados à
confiabilidade interpessoal, crises de desconfiança generalizada com
paralela perda de motivação, aumento de manifestações de desajuste psicológico
(conflitos familiares, alcoolismo, consumo de drogas, surtos psicóticos),
conflitos mais explícitos com a clientela. No limite, há casos de suicídio,
de somatizações sérias (enfartes, derrames, súbito aparecimento e progressão
de doenças graves, ou ocorrência de acidentes com vítimas, às vezes
fatais), assim como o aparecimento dos casos de delinqüências maiores
(vandalismo premeditado, chantagem, sabotagem, e até seqüestros). Fatos
como estes ocorrem com crescente intensidade. Podem ocorrer a qualquer
momento, bem próximos de qualquer de nós.
De outro
lado, há a evidência do aumento de fatos policiais mais diretamente
relacionáveis a fenômenos desta natureza. Por exemplo, a polícia militar
de São Paulo tem atendido a uma média de 90 ameaças de bombas por mês,
em instituições as mais diversas: de escolas a indústrias. O número
de vítimas dos acidentes de trânsito equiparam-se aos de uma guerra.
Ocorrem incêndios intencionais e certos atos criminosos até a pouco
incomuns: sabotagens de porte maior, chantagem industrial, sem falar
nos seqüestros. Há aumento dos incidentes em locais públicos, com, por
exemplo, o metrô.
Enfim,
há os casos notórios de impacto institucional de que tivemos conhecimento
nos últimos tempos, como os da Nestlé, Balas Van Melle, Cultura Inglesa,
só para citar alguns.
Crise
e Anomia
Conceituemos:
na base dessas manifestações está o fenômeno que os sociólogos denominam
de anomia que é a perda generalizada de referências quanto a normas
e valores numa sociedade. O que torna este fenômeno tão poderoso é seu
caráter invasivo, próprio dos processos psicossociais de massa, já que
adquirem velocidade crescente de propagação, em decorrência da retro-alimentação
provocada pelas intensas ansiedades mobilizadas, ao mesmo tempo, em
toda a sociedade.
A anomia
pode ter conseqüências devastadoras para o imaginário, tanto social
quanto individual: cria um clima subjacente de pânico, de desespero;
favorece a disseminação de boatos, de desconfiança e, segundo o caso,
de condutas apáticas, paranóides, ou aberrantemente delinqüentes; freqüentemente
dispara dinamismos psicossociais de altíssimo potencial destrutivo,
na medida em que rompe com os pressupostos básicos da solidariedade
e da agregação social. Esses dinamismos têm enorme potencial para estilhaçar,
ao impactarem, internamente, a rede de vínculos institucionais.
As relações
sociais entre os seres humanos são produzidas e reproduzidas a cada
dia, a cada hora, a cada minuto. É esta reprodução cotidiana que nos
faz agir hoje como agimos ontem, e é ela que permite também a progressiva
introdução de mudanças na sociedade. Em condições normais, as referências
às pautas culturais funcionam como articuladoras dessa reprodução das
relações sociais. Através da mediação delas os indivíduos sustentam
suas expectativas de conduta, para si e para os outros, e é por esse
meio que reconhecem as formas admitidas de relações e de resolução de
conflitos. Essas referências exercem, portanto, importantíssimo papel
na manutenção da coesão e da solidariedade, sem as quais é impossível
a vida comunitária. Sua perda generalizada desorganiza totalmente este
processo de reprodução das relações sociais. Em muitas circunstâncias,
chega mesmo a enlouquecer, de forma momentânea ou permanente, as pessoas,
provocando surtos de conduta não correspondentes aos limites sociais
admitidos. Isto ocorre porque a ruptura destas referências, ao remeter
as pessoas, de modo abrupto, à impossibilidade de antecipação das condutas
sociais tanto das dos demais quanto da suas próprias ,
leva à vivência de profunda sensação de insegurança, mobilizando ansiedades
muito primitivas e de intensa força motivacional.
As circunstâncias
históricas que levam à anomia numa sociedade são diversas. No entanto,
todas elas têm em comum o fato de o que se perde é a própria noção de
eqüidade social, único elemento capaz de nos fazer tolerar as frustrações
inevitáveis que a vida social nos impõe. Em suma, é como se a civilização
regredisse à barbárie.
Para
sair do vórtice da anomia, a dinâmica psicossocial se desenvolve em
duas direções ao mesmo tempo, uma horizontal e outra vertical: de um
lado, as pessoas buscam refazer laços de solidariedade pessoal umas
com as outras, em círculos cada vez mais extensos, reconstruindo, deste
modo, expectativas mútuas de condutas; de outro, o grupo social como
um todo procura se rearticular em busca de lideranças capazes de dar
sustentação às suas expectativas de reorganização. Este é um momento
muito delicado do processo, já que, no conjunto, as pessoas se encontram
muito frágeis. Por isso, há o risco do aparecimento de lideranças demagógicas,
as quais podem impulsionar a sociedade como um todo para direções historicamente
desastrosas.
Preservação
de vínculos e profilaxia institucional
Não
há precedente em nossa história de anomia tão profunda, de descrédito
tão universal, de tamanha perda de valores de justiça, civilidade e
cidadania. Não há registro de confusão tão generalizada no encaminhamento
e solução dos conflitos. Nossa secular falta de eqüidade na distribuição
da riqueza tem muito a ver com isso: porque nossa crise é de ruptura
da legitimidade do obsoleto pacto social de dominação que estrutura
o exercício do poder em nossa sociedade, já que não garante mais nem
mesmo a sobrevivência à maior parte da população. A demagogia, tanto
à direita quanto à esquerda, contribui com sua absurda irresponsabilidade.
A estupidez e o cinismo, neste contexto, já ultrapassam os limites toleráveis:
em última análise, ninguém aceita perder absolutamente nada. Com isso,
aumentamos o custo histórico das futuras soluções, escancaramos as portas
para aventureiros e oportunistas, recriamos a possibilidade de uma aventura
messiânica que só aumentará o preço de nosso resgate em termos de violência
e destruição. O positivo, no entanto, principalmente do ponto de vista
político e histórico, é que, também, nunca antes, tantos estiveram,
ao mesmo tempo, tão conscientes e tão reivindicantes diante do valor
nenhum que se dá aos direitos fundamentais dos cidadãos. Esta é a forma
surda, nas entranhas desse processo, pelo qual ele próprio traz, em
seu bojo, o gérmen de sua solução, da reparação das cicatrizes que ele
próprio provoca.
Nenhuma
instituição, por mais brilhante que seja sua performance nesta crise,
estará isenta de suas conseqüências. Sempre será necessário atenção
para a emergência, tanto no plano externo quanto interno, de eventos
desviantes decorrentes da anomia do ambiente. O melhor é antecipar toda
esta loucura, evitando principalmente, a ruptura de vínculos. A palavra
de ordem, nestas circunstâncias, é a da lucidez em vez de violência:
a loucura impõe o desafio de sua interpretação e do desvendamento de
sua verdade. Freud nos ensinou que, no discurso louco, estão contidas
verdades essenciais. Basta entender seu sentido. Seu método de interpretação
está sustentado na compreensão de que os processos psíquicos individuais
e sociais resultam da conjunção de conteúdos provenientes da realidade
que se distorcem para expressar desejos inconscientes reprimidos. Este
é o bom caminho para a compreensão das situações inusitadas com as quais
podemos nos defrontar nesta conjuntura.
Quais
as verdades contidas por trás das aparências deste contexto? Nas condições
atuais, a maior necessidade subjacente nos eventos tantas vezes surpreendentes,
por mais estranho que possa parecer, é a da busca da recuperação da
credibilidade nos vínculos. As pessoas precisam confiar. Contraditoriamente,
atacam, até, por que têm medo de serem, mais uma vez, esbulhadas em
sua boa fé. É necessário, portanto, considerar seriamente a introdução
de políticas bem estruturadas para garantir a credibilidade nos vínculos
intra e inter-institucionais, e preservá-los. E é importante, neste
sentido, ter em mente que a primeira confiança é a confiança de confessar
a desconfiança. Para promover esta confiança é necessário muita paciência,
continência e perseverança.
1°
Atos de delinqüência, como pequenos roubos ou gestos isolados de vandalismo:
representam forma de comunicação reprimida de descontentamentos que
não encontram canais de expressão. O melhor modo de lidar com isso é
estruturar programas para permitir às pessoas a expressão de suas insatisfações
e frustrações. É bom reduzir fatores de repressão, permitindo o grau
exato de informalidade, abrindo espaço para o inter-pessoal. As pessoas
privilegiam vínculos pessoais, mais confiáveis, na sua percepção, que
os institucionais.
2°
Boatos e rumores: representam algo semelhante. Em alguns casos, expressam
tentativas de controle, ou de exercício de pressão sobre o processo
decisório, ou são testes para confirmação de hipóteses sobre o desenrolar
dos acontecimentos. Mas são, sempre, mecanismos defensivos para o controle
da ansiedade. Os psicólogos sociais identificaram, por exemplo, em situações
como as de terremotos, que os boatos podem surgir para reduzir a dissonância
cognitiva causada pelo impacto do flagelo. Para se adaptarem às situações
difíceis, as pessoas costumam imaginar catástrofes ainda maiores, como
que num raciocínio de Poliana. Em todo caso é importante ter em mente
o princípio da guerra da contra-informação: a melhor forma de combater
boatos é disseminar com clareza a informação verdadeira, e, ao mesmo
tempo, evidenciar o objetivo oculto da informação falsa. Este foi o
fundamento do êxito da estratégia da Nestlé diante da chantagem por
ela sofrida. Inegavelmente, saiu de uma situação complicadíssima com
sua imagem de credibilidade reforçada.
3°
Desentendimentos, excesso de tensão e confusão: representam outro tipo
de manifestação. Nestes casos, as pessoas estão sentindo, de forma distinta,
ameaças às suas condições de segurança. Isto pode provocar grande perda
de motivação com queda na sinergia e na produtividade do grupo. É importante
privilegiar a cooperação e não a competição. É bom lembrar que esclarecer
as pessoas sobre as ameaças reais e fixar objetivos comuns, vinculando-os,
objetivamente, às metas pessoais e grupais de busca de maior estabilidade
e de preservação do emprego, sempre foi um método bem sucedido em situações
desta natureza. O inimigo comum une o grupo e o motiva fortemente.
4°
Casos individuais de desajustes: também merecem atenção. Investigar,
falar francamente com as pessoas, nunca fez mal a ninguém. As pessoas
podem estar vivendo dificuldades reais que, se consideradas, e com apoio,
podem ser solucionadas. No limite, não se deve hesitar em contratar
profissionais especializados, capazes de abordar competentemente os
casos de maior gravidade. É importante que o grupo inteiro saiba que
a instituição protege o mais frágil. Isto reforça a segurança de todos.
5°
Laços com clientes e fornecedores: são também vitais. Comunicar-se com
eles, abordar franca e diretamente as dificuldades, transmitindo a mensagem
clara de uma política institucional de preservação de vínculos, este
é um modo muito eficaz de colocar credibilidade onde faltam referências
para as relações inter-institucionais.