Olhando para o século XXI 1
Uma visão do mundo globalizado
Marco Aurélio F. Velloso 2

Advertências iniciais

Façamos uma tentativa, ainda que rápida, de perscrutar nosso futuro.

Apesar da exposição à mídia, e da circulação das informações — diariamente estamos sendo bombardeados com a palavra globalização —, observo que, em geral, as pessoas têm grande dificuldade de entender o contexto dos acontecimentos e a direção geral do seu movimento.

Por isso, embora consciente de que corro o risco de, de um lado, ser redundante, e, de outro, de me dizerem que isso não tem nada a ver com psicologia, e que, portanto, não tenho competência para tratar desse tema, ou ainda, de considerarem que este texto é superficial e sem base, vou tentar suspender uma ponta do véu que turva nossa visão do futuro dentro do contexto das mudanças que estão nos levando a um mundo globalizado.

Creio que a construção desse cenário mais geral é essencial para nos situarmos no contexto do processo que estamos vivendo, e que sem ele é impossível fazer escolhas que resultem na fixação de rumos para o nosso caminho, por mais tormentosos que sejam os mares pelos quais tenhamos que navegar. Sei também que, por mais informado que alguém possa sê-lo, seria impossível para um indivíduo isolado, e muito menos ainda no espaço restrito deste trabalho, apresentar um quadro completo que desenhe com clareza a inteireza do panorama que se descortina.

No entanto, meu objetivo é o de estimular o pensamento, favorecer a reflexão crítica, motivar indivíduos e grupos para o esforço de pensar o futuro e criar os meios de fazer com que as poderosas forças que impulsionam esse processo sejam canalizadas para fins construtivos.

É por aí que justifico este esforço.

Construindo um cenário

Como já dizia Sêneca, ‘não há vento favorável para quem não sabe para onde ir’. Sendo assim, espero que, pelo menos, os elementos que reuno a seguir contribuam para a constituição de um núcleo em torno do qual se possa ir, progressivamente, agregando outros elementos relevantes para a consideração do futuro.

À medida que nos aproximamos da virada do século, cada vez mais, nos deparamos com cenários paradoxais, onde o sublime e o pérfido se imbricam de modo muito estreito.

Avanços tecnológicos simplesmente inimagináveis há bem pouco tempo — e que representam efetiva contribuição para a plena realização dos potenciais humanos —, tais como a integração econômica em âmbito planetário e o importantíssimo processo de surgimento de uma consciência nova de cidadania mundial, convivem, em longitudes e latitudes as mais diferentes, na cauda do impacto do desemprego estrutural e da crescente e violenta exclusão de quatro quintos da humanidade do ciclo de produção e consumo criado pelo que se convencionou chamar de terceira revolução industrial, com o aumento insuportável da miséria, com a disseminação da AIDS, com o aparecimento de novas formas de violência, com a conglomeração do crime, com o crescimento exponencial do fanatismo beligerante dos fundamentalismos religiosos, com o reaparecimento do fascismo e o recrudescimento do racismo.

O processo de mudanças econômicas, políticas e sociais vem se acelerando enormemente nas últimas décadas: o mundo atravessa transformações cada vez mais rápidas e radicais, o que provoca estupor e desorientação em todos nós.

Daí resultam avaliações controversas quanto ao que nos ocorrerá, mesmo da perspectiva de um futuro próximo: otimistas e pessimistas se confrontam, todos, ao mesmo tempo, igualmente cobertos de razões e perdidamente equivocados.

Por isso, prospectar o futuro, hoje, significa confrontar paradoxos, razão pela qual, muito provavelmente, é a consideração dos paradoxos a marca característica da construção desse cenário.

O despertar de um mundo novo

Na verdade, a segunda guerra produziu o mundo no qual vínhamos vivendo, sepultando, definitivamente, os últimos traços remanescentes da sociedade do século XIX e produzindo as características de diferenciação da sociedade do século XX: uma sociedade predominantemente urbana e industrial.

No entanto, a partir da década de 70, a crise da sociedade do pós-guerra começou a se manifestar, iniciando-se, com isso, um torvelinho de aceleração de mudanças que nos projeta, inexoravelmente, para dentro e para além do século XXI.

As crises do petróleo, a disseminação da consciência do risco de extinção de nossa espécie em decorrência da confrontação nuclear, a compreensão ainda tênue que então começou a surgir quanto às conseqüências do impacto ecológico do crescimento industrial, tudo isso começou a se juntar no cadinho da transformação histórica e social.

O otimismo sorridente do pós-guerra começava a ser substituído por sobrolhos franzidos de futurólogos reunidos no Clube de Roma e fundamentados em informações preocupantes.

O trecho a seguir de Heilbroner (1974) representa bem o novo estado de ânimo que então começava a se delinear:

“Existe uma pergunta no ar, mais pressentida do que ouvida, como a invisível aproximação da tormenta distante; uma pergunta que eu hesitaria em formular se não acreditasse que ela existe, latente, na mente de muitos: ‘Há esperança para o Homem?

Em outras épocas, tal pergunta provocaria reflexões sobre a salvação ou danação eterna do homem. Mas hoje as dúvidas perturbadoras que ela suscita referem-se à vida terrena de agora e à de relativamente poucas gerações, limitadas por nossa capacidade de prever o futuro. Por que essa pergunta quer saber se podemos antever um futuro diferente do passado de continuidade de treva, crueldade e desordem; e, o que é pior, se não podemos prever, na perspectiva do homem, uma deterioração das coisas ou mesmo uma iminente catástrofe de dimensões aterradoras.”

De fato, as crises do petróleo acirraram a competição econômica, desnudando a fragilidade da dependência da economia industrial dessa fonte predominante de energia e matérias primas.

Ao mesmo tempo, o esgotamento das possibilidades de inovação, tanto na concepção quanto na produção de produtos e serviços, a partir da utilização dos conhecimentos científicos até então acumulados e de domínio público, impulsionaram a competição econômica internacional na direção da pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias.

Com base nesse impulso, algumas áreas de pesquisa e desenvolvimento tecnológico assumiram importância estratégica primordial do ponto de vista competitivo:

1.   Energia:     

Desenvolvimento de novos métodos de produção, transmissão, acumulação e utilização econômica (máquinas verdes) de energia elétrica, e busca incessante de alternativas energéticas para o petróleo (energia limpa e renovável, álcool, captação solar, aproveitamento de energia eólica, hidrogênio, fusão a frio, etc.).

2.   Química fina:

Novos materiais e processos industriais alternativos, produtos farmacêuticos de nova geração, desenvolvimento de novos métodos de reciclagem de materiais.

3.   Biotecnologia:

Desenvolvimento de novas técnicas de intervenção na estrutura genética de organismos resultando na criação de organismos não existentes originalmente na natureza e de utilidade na produção industrial (principalmente farmacêutica), na agricultura e na pecuária.

4.   Informática, eletrônica e robótica:    

Desenvolvimento de novos meios de tratamento de informações e controle de processos, tanto em nível de ‘hardware’ como de ‘software’.

5.   Telecomunicações e transporte:

Aplicação intensiva de novos recursos tecnológicos para o desenvolvimento dos meios existentes e criação de novos recursos de comunicação e transporte.

As conseqüências desse esforço logo começaram a se manifestar, criando novas oportunidades, interagindo com a própria dinâmica política, econômica e social do mundo em que vivemos, gerando novas perspectivas de desenvolvimento e, ao mesmo tempo, introduzindo novas dimensões nos conflitos existentes.

Um novo produto de um novo processo industrial

Progressivamente, de dentro dessa voragem competitiva, e em decorrência dos novos recursos resultantes do desenvolvimento das novas aplicações tecnológicas tanto aos produtos quanto aos processos produtivos, foi surgindo uma nova concepção de produto e de processo industrial.

O produto industrial deste final do século XX, na sua concepção, pauta-se por conceitos inovadores, adquirindo características que o diferenciam profundamente de seus antecessores de poucas décadas antes.

De um modo geral, pode-se alinhar os seguintes aspectos como diferenciadores dessas novas características:

1.     Produto mundial:

Produto concebido para comercialização num mercado definido como planetário (o que pressupõe também, e ao mesmo tempo, uma integração e  uma competição planetárias), produzido também em escala mundial, o que significa integrar processos produtivos distribuídos geograficamente nas mais díspares regiões do globo.

6.   Produto compacto:

Representando uma tendência generalizada à redução de tamanho e peso, mediante a agregação de mais tecnologia na miniaturização de sistemas e utilização de matérias primas mais leves e substituíveis.

7.   Produto mais econômico e inteligente:

Demandando, tanto na produção quanto na utilização, menos gasto de energia motriz e menos força bruta de trabalho humano, ao mesmo tempo em que embute mais tecnologia e exige mais trabalho inteligente e mais esforço na simplificação de processos tanto na produção quanto no gerenciamento dela.

Além desses aspectos mais gerais, poderíamos citar outras tendências que tendem a se tornar, do mesmo modo, bastante generalizadas: ênfase na busca de padrões de qualidade estáveis, intensiva utilização da eletrônica e da cibernética nos sistemas de comando e controle, do que resulta também a utilização em larga escala do conceito de integração de módulos em sistemas cada vez mais complexos, interativos, e capazes tanto de fornecer quando de receber, processar e responder ao intercâmbio automático de informações em tempo real.

Essas novas concepções impactaram fortemente a indústria, exigindo sua reestruturação em novas bases, já que foram alterados radicalmente os princípios sobre os quais se assentava a estratégia competitiva até então adotada.

Afinal, que planeta é esse?

Frente a estas novas condicionantes, iniciou-se de imediato um profundo processo de reorganização industrial (reengenharia), caracterizando a terceira revolução industrial.

No entanto, as conseqüências não se reduziram somente a este aspecto.

Instalou-se acirrada competição que potencializou, de forma impressionante, os impactos econômicos, políticos e sociais desse processo como um todo, fazendo com que, no despontar dos anos 90, nos víssemos definitivamente diante da globalização econômica que revoluciona totalmente nossa própria visão de mundo.

Ao mesmo tempo, emergiu um contexto conflituoso e turbulento, evidenciando fortemente as fragilidades existentes, e levando à ruptura de muitos dos referenciais institucionais sobre os quais se assentava o mundo construído a partir do armistício de 45.

Esse processo de ruptura institucional, no presente momento, está tenuemente delineado, e é de se esperar que, nas próximas décadas, se manifeste de forma ainda mais intensa e radical.

Talvez o fator mais preocupante embutido dentro dele está caracterizado pela generalização do fenômeno do desemprego estrutural que assola hoje o mundo industrializado, e que se constitui numa verdadeira bomba de tempo que ameaça a explosão das estruturas sociais em que vivemos. Isso ficou mais do que evidente durante o Fórum Econômico Mundial realizado em Davos, na Suíça, em janeiro de 1993 (vd. Resk, 1994).

Em conseqüência disso, uma série impressionante de eventos vem nos surpreendendo a cada dia.

A intensificação da competição no plano internacional impulsionou a formação de blocos econômicos, estimulando o surgimento de novas formas de protecionismo, e interferindo também na estrutura política e social do mundo contemporâneo.

A aceleração do processo de integração européia, a criação do NAFTA, e a organização de outros blocos econômicos, entre os quais o MERCOSUL, é uma outra das conseqüências desse processo em franco desdobramento.

Ao mesmo tempo, grandes mudanças políticas ocorreram, tanto no mundo socialista — levando à precoce comemoração da vitória definitiva do capitalismo sobre o comunismo, fato que, hoje, suscita muito mais preocupações do que euforia, dadas as conseqüências observadas nos desdobramentos político-institucionais da CEI —, quanto no mundo ocidental — a reunificação da Alemanha, por exemplo, era simplesmente inimaginável uma década antes.

Ao par disso tudo, a Guerra do Golfo, a fome na Somália, a guerra civil na ex-Iugoslávia, a criação do Estado Palestino com o reconhecimento da OLP por Israel e com a assinatura do tratado de paz com a Jordânia, o fim do ‘apartheid’ na África do Sul, as guerras tribais na África, das quais Ruanda é o exemplo mais evidente, são outros eventos, só para citar alguns, que vêm impactando o mundo contemporâneo, representando, ao mesmo tempo, soluções inesperadas para conflitos há bem pouco considerados insolúveis e prenunciando novas crises, novos desafios e novos paradoxos.

Sinais desta ruptura institucional, e da inexorável necessidade de mudança, são as palavras novas com que se tenta expressar conceitos e teorias quanto à nova direção a ser introduzida na sociedade. ‘Perestroika’ e ‘glasnost’, foram largamente utilizadas no oriente, reengenharia, qualidade total, terceirização, ‘downsizing’ e ‘rightsizing’, no ambiente privado do ocidente, ou privatização e redução do Estado, no ambiente público.

São, todas elas, faces desse mesmo e único processo de busca de superação dos limites institucionais em que se sustenta ainda o nosso mundo.

Em outras palavras: o processo que levou à desmontagem da gestão centralizada pelo partido comunista da economia na União Soviética, é, na essência, o mesmo que leva a General Motors a fechar fábricas e a rever sua estrutura gerencial, as empresas a praticarem a reengenharia de seus processos e a terceirizar funções  direta ou indiretamente vinculadas às suas atividades produtivas, e os Estados Nacionais a reexaminarem o grau de sua intervenção na economia, privatizando empresas públicas e implementando novas formas de concessões de serviços públicos!

A nova matriz:
multipolaridade interpelativa

Na verdade, um dos fatores mais determinantes de todo esse processo é o desenvolvimento de novas tecnologias a partir da eletrônica e da cibernética e sua aplicação à microinformática, que rompem com princípios que, há milhares de anos, regem o tratamento de informações nas sociedades humanas.

De fato, a estrutura piramidal das organizações, seja qual seja sua natureza, ainda está sustentada em modelos arcaicos de tratamento de informações. Vejamos porque.

O processo de tomada de decisões sempre envolveu a coleta, tratamento e interpretação de informações. E essa é uma tarefa ao mesmo tempo árdua, complexa, e que exige grande acuidade.

Para viabilizar esse processo, a começar pelos exércitos, a estrutura organizacional sempre terminou por assumir uma forma piramidal, já que, se a coleta de informações pressupunha o recolhimento de dados numa base extensa, seu manejo e análise exigiam a concentração das informações num lugar central.

Por isso, não só a forma piramidal de organização era inevitável, mas também a criação de estruturas de poder altamente verticalizadas que, em última análise, pressupunham a possibilidade de reunião de informações nas mãos de uns poucos detentores efetivos dos próprios meios de exercê-lo, tanto nas sociedades, quanto nas organizações.

Estamos, agora, diante de um fato inédito na humanidade.

O desenvolvimento da microinformática, e, mais particularmente, das técnicas de interconectividade, resultaram na implantação de sistemas em rede que propiciam uma circulação sem precedentes de informações.

A partir das novas tecnologias que estão rapidamente se expandindo em todo o mundo, qualquer pessoa, situada em qualquer longitude ou latitude, pode acessar instantaneamente meios de comunicação interativos, e, através deles, bancos de dados localizados em qualquer outro lugar do planeta, apropriando-se de informação em quantidade e qualidade absolutamente impensáveis há bem pouco tempo. E é possível imaginar, por aí, ainda novas possibilidades para os seres humanos.

Isso significa que, num horizonte muito próximo - porque, de fato, a tecnologia para isso já é hoje disponível -, qualquer cidadão poderá dispor, em tempo real, do mesmo volume de informação anteriormente à disposição, exclusivamente, dos homens de poder e dos governos.

Tanto a possibilidade concreta da ‘portabilidade’ da informação (por exemplo, o engenheiro que, da fábrica do cliente, pode trabalhar ‘on-line’ com seu ‘notebook’ celular com os dados existentes na sede de sua própria empresa), quanto a interatividade disponibilizada maciçamente para o tratamento da informação (a dona de casa que faz compras acessando o banco de dados multimídia do supermercado via computador ou TV interativa, ou a criança que seleciona e ativa ‘on-line’ a projeção de um filme na vídeo-locadora), criam possibilidades inteiramente novas, e que rompem definitivamente com o modelo piramidal tradicional.

A estrutura política e institucional da nova sociedade que emerge diante de nós poderá estar sustentada, por exemplo, na realização de plebiscitos instantâneos, assim como o lugar de trabalho se tornará cada vez mais virtual, rompendo com os conceitos tradicionais aos quais nos acostumamos com relação ao espaço de exercício da produção.

Estes fatos, por si só, têm um potencial imenso de transformação da sociedade, ao mesmo tempo em que impulsionam ainda mais na direção da integração e da globalização. Neste contexto, cada indivíduo poderá contar com recursos de acesso à informação, e com a possibilidade concreta de exercer um papel ativo no seu manejo e na sua utilização.

Das Pirâmides para as redes

Por isso, a estrutura das novas organizações tende, cada vez mais, a se assemelhar à de uma rede, afastando-se do modelo antigo da pirâmide.

Text Box:

A principal diferença da estrutura piramidal e da de rede, é que a primeira tem um corpo maciço, compacto, com o núcleo de poder situado em seu topo, enquanto a estrutura de redes tende a ser virtual, parecendo, portanto, ter um centro vazio, que não ocupa espaço, e que é constituído, de fato, pela intensidade das interações existentes na totalidade da rede.

Em decorrência, as organizações que se estruturarem segundo um modelo de rede apresentarão uma arquitetura de poder bastante diluída, que será definida pelo direcionamento da informação: onde houver maior volume e tráfego de informação, aí existirá mais poder.

Com isso, dentro das organizações, conceitos de autoridade e poder e critérios de interação e participação no processo decisório tenderão a assumir, nas próximas décadas, novas formas — e novos paradoxos —, também inimagináveis há bem pouco tempo.

Tudo isso está provocando profundas mudanças nas relações de trabalho, que já estão adquirindo fisionomia inteiramente nova, e sofrerão um impacto ainda maior na medida do avanço dessas inovações. O lugar de trabalho, assim como o conhecemos, sob muitos aspectos, está deixando de existir. A própria associação entre o conceito de trabalho e o de valor econômico será alterada profundamente nas próximas décadas. Cada vez mais e mais pessoas trabalharão fisicamente em suas próprias casas, ou em seus automóveis, interconectadas ‘on-line’ com as redes de suas organizações, na sede das quais, raramente, comparecerão. O tempo livre será maior, o trabalho menos rotineiro.

O modelo de referência deixa, portanto, de ser a pirâmide para se transformar na rede.

Por isso, e muito provavelmente, a nova sociedade que estamos vendo surgir, e de cuja construção, de algum modo, estamos participando, será uma sociedade planetária, multipolar e intensamente interpelativa, ou seja, estruturada segundo a arquitetura de uma imensa rede mundial.

Coesão coercitiva, em vez de coerção coesiva

Nesse novo mundo que está surgindo diante de nossos olhos, as questões relacionadas à governabilidade tanto das sociedades quanto das organizações se colocarão de forma absolutamente nova: mais do que das forças de coerção, a governabilidade dependerá da coesão social.

Numa estrutura piramidal, no ápice, se concentra uma elite que de fato detém o poder, e que pode dispor de meios de coerção para exercer esse poder. Através do exercício dessa coerção é que se obtém, em última instância, a coesão indispensável ao funcionamento e sobrevivência dessas formas de organização social.

Numa estrutura em rede, como esse poder se dilui, seu exercício depende muito mais da habilidade de convencer e de obter adesão para as propostas do que da possibilidade de coagir as pessoas a se manterem dentro de limites estabelecidos pelos que dirigem. Em outros termos, a coerção, numa estrutura como essa, surge da coesão social, e é imposta a cada indivíduo pelo desejo coletivo de pertencer à estrutura.

Essas novas formas de estruturação das organizações colocam, e com ênfase nova, o questionamento que Freud (1974b) já fazia:

‘Fica-se assim com a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a uma maioria resistente por uma minoria que compreendeu como obter a posse dos meios de poder e coerção. Evidentemente, é natural supor que essas dificuldades não são inerentes à natureza da própria civilização, mas determinadas pelas imperfeições  das formas culturais que até agora se desenvolveram. E, de fato, não é difícil assinalar esses defeitos. Embora a humanidade tenha efetuado avanços contínuos  em seu controle sobre a natureza, podendo esperar efetuar outros ainda maiores, não é possível estabelecer com certeza que um progresso semelhante tenha sido feito no trato dos assuntos humanos; e provavelmente em todos os períodos, tal como hoje novamente, muitas pessoas se perguntaram se vale realmente a pena defender a pouca civilização que foi assim adquirida. Pensar-se-ia ser possível um reordenamento das relações humanas, que removeria as fontes de insatisfação para com a civilização pela renúncia à coerção e à repressão dos instintos, de sorte que, imperturbados pela discórdia interna, os homens pudessem dedicar-se à aquisição da riqueza e à sua fruição. Essa seria a idade de ouro, mas é discutível se tal estado de coisas pode ser tornado realidade. Parece, antes, que toda civilização tem de se erigir sobre a coerção e a renúncia ao instinto; sequer parece certo se, caso cessasse a coerção, a maioria dos seres humanos estaria preparada para empreender o trabalho necessário à aquisição de novas riquezas. Acho que se tem que levar em conta o fato de estarem presentes em todos os homens tendências destrutivas e, portanto, anti-sociais e anti-culturais, e que, num grande número de pessoas, essas tendências são suficientemente fortes para determinar o comportamento delas na sociedade.’

Um exemplo muito interessante, que pode ajudar a entender essa questão, está na forma de estruturação da rede Internet (Lambert, 1993). Trata-se, provavelmente, do fenômeno mais representativo e impressionante desse novo mundo que está surgindo.

Implantada, inicialmente, como uma rede eletrônica de interconecção para o exército americano, foi desenhada para poder subsistir em palco de guerra. Desse modo, sua arquitetura é de tal ordem que a eventual destruição de um de seus nodos não afeta o funcionamento da rede como um todo. Convertida ao uso civil, esta rede vem se expandindo a uma taxa de 500% a 1000% ao ano, conforme a região do mundo 3 . Reúne hoje mais de 24.000 redes, com mais de 2.000.000 de computadores e, pelas últimas estimativas, já ultrapassou os 33.000.000 de usuários. Desdobra-se, a cada momento, em novas redes, distribuídas por todo o mundo.

Um dos aspectos fascinantes da rede Internet é o fato de ninguém conseguir saber, efetivamente, seu tamanho exato: número de computadores e de nodos a ela interligados. Outro aspecto, é o de sua forma de administração, e da extrema dificuldade que ela enfrenta para estabelecer normas de funcionamento. Na Internet não existe presidente, não existem autoridades. Há um conselho dos mais antigos, por assim dizer. Na verdade, as normas de funcionamento da Internet estão sustentadas, até agora, em uma espécie de código de cavalheirismo, muito fluido, que, ao mesmo tempo que a viabiliza, cria grandes dificuldades para a sua gestão. Ela se sustenta, basicamente, no conceito de que todos os seus participantes desejam que ela funcione!

Uma das discussões interessantíssimas que está se desdobrando, neste momento, na rede Internet, tem a ver com as medidas a serem adotadas para coibir as transgressões praticadas pelos ‘hackers 4 , dado não só a variedade das leis (de diversos países) aplicáveis a cada caso, como, também, à ameaça à privacidade dos usuários que medidas coercitivas possam comportar.

O mesmo ocorrerá com as sociedades e as instituições. Elas dependerão, cada vez mais, do desejo de seus membros de que funcionem.

Para isso, quanto mais organizadas forem as sociedades em estruturas sociais independentes das estruturas do Estado e de poder, mais governáveis elas serão (Putnam, 1993 e 1994 ), por que terão mais força de integração.

Isso não significa que o poder deixe de ser exercido nelas, ou que inexistam meios tecnológicos que o garantam. Mas o exercício de poder nessas estruturas sociais renovadas estará muito mais diretamente relacionado à interação com a população, inclusive porque os meios tecnológicos favorecerão a adoção de mecanismos de democracia direta.

Em outros termos, a legitimidade institucional no exercício do poder vai se tornar um questão cada dia mais importante no cotidiano das sociedades e das organizações.

Este critério, que é verdadeiro para as sociedades, é também vitalmente importante para as organizações. Sem ele serão incapazes de desenvolverem o ‘learning’ organizacional indispensável à sua sobrevivência (Argyris, 1992).

Ocorre que este objetivo só poderá ser alcançado se forem garantidas, nas sociedades e nas instituições em geral, condições de participação e transparência, que reforcem a adesão dos indivíduos pelo asseguramento de liberdade e eqüidade 5 nas relações sociais em que se inscrevem. Ou seja,  esse objetivo só será alcançado nas sociedades e nas organizações onde existir uma arquitetura institucional que favoreça um relacionamento interpelativo, capaz de gerar efetivo convencimento quanto às vantagens da vida social estruturada.

Civilização ou barbárie?

É fundamental que tomemos consciência de que as mudanças de que estamos participando têm uma qualidade nova. Não se trata, simplesmente, de transformações cosméticas, superficiais, de mera ocasião. Vão ao cerne do que representa, para nossa espécie, a própria vida em sociedade.

Esse processo de transição que estamos atravessando é, ao mesmo tempo, um fenômeno raro (talvez, a última vez que a humanidade atravessou período equivalente de mudanças tenha sido na transição do século XIV para o XV, quando se forjaram as bases para o que veio a ser a sociedade moderna e capitalista), e bastante longo (horizonte mínimo de 50 anos de intensas transformações e mudanças) (Drucker, 1993).

Como sempre ocorreu na História, esse processo de intensa transformação e mudança irá, inevitavelmente, causar o aparecimento de muitos conflitos, turbulências, e, inexoravelmente, provocará também a perda de muitas vidas humanas.

É evidente, para qualquer homem sensato, que não tem qualquer viabilidade um projeto de construção de uma civilização humana, a nível planetário, que parta da exclusão de 4/5 da população da terra do circuito econômico da produção e do consumo. É evidente também que a solução desse problema está diretamente ligada ao equacionamento desse fenômeno novo e profundamente perverso que é o do desemprego estrutural, onde o crescimento econômico estranhamente convive com o desemprego de uma forma que surpreende economistas, empresários e governantes…

Diga-se de passagem, no entanto, que apesar de angustiante, esta questão do desemprego estrutural está longe de ser plenamente compreendida e, por isso mesmo, de ser equacionada!

De um lado, as transformações econômicas, com as novas exigências de qualificação indispensáveis para que as pessoas possam se tornar aptas a participar do novo ciclo de produção e consumo, sem falar da própria aspiração à cidadania, fazem surgir em nosso mundo quadros de uma tragicidade dantesca.

A sociedade desse fim de século está excluindo rapidamente desse ciclo massas imensas de seres humanos, condenando-as a condições de marginalidade ou de vida subumana. Isso faz com que os pobres e educacionalmente despreparados se vejam compelidos a escolher entre três opções básicas:

1.   Morrerem à míngua, de inanição.

2.   Aliarem-se aos bandos marginais do crime conglomerado.

3.   Alistarem-se nas hostes dos fundamentalismos religiosos beligerantes.

De outro lado, abre perspectivas de uma vida humana muito mais rica, onde as pessoas trabalharão menos, em que o conceito de trabalho não estará mais diretamente ligado à idéia de valor econômico, e onde o tempo livre possa ser utilizado para um enriquecimento pessoal e cultural invejável para os padrões atuais. São perspectivas que podem modificar profundamente as condições da sociabilidade nas famílias e nas relações comunitárias.

De todo modo, frente a um processo intenso de mudança como esse, perdem-se, muito facilmente, referências sociais de valores e de padrões de conduta, favorecendo a emergência da anomia 6 como patologia social e individual, com impacto global sobre o mundo em que vivemos.

Isto porque, na verdade, trata-se de um processo contraditório, onde avanços nas possibilidades concretas de realização das potencialidades humanas convivem com crueldade, destrutividade em escala massiva, e desafios novos e inesperados para nossa própria sobrevivência, não só como civilização, mas também enquanto espécie: o século XXI pode facilmente transformar-se num palco de extensos genocídios, frente aos quais Bósnia e Ruanda apareçam como meros ensaios amadorísticos e desastrados. Uma das possibilidades concretas é a de que a população da Terra venha a ser reduzida em 2 a 3 bilhões de seres humanos!

Portanto, este é um momento onde a pergunta de Heilbroner (1974) se torna profética: Há esperança para o Homem?

Para mim, pessoalmente, o acirramento dessas contradições e a aproximação de situações limite tão drásticas só renovam minha esperança: na verdade, nossa espécie só deu seus saltos civilizatórios mais significativos quando atingiu limites equivalentes, frente aos quais sua própria sobrevivência estava em jogo. Na beira do abismo, fala mais alto o instinto de vida.

Trata-se, enfim, de um momento muito novo na História da Humanidade, que nos propõe a cada instante novas questões éticas, com impacto inesperado: veja-se a questão da emergência e disseminação tão inexplicada quanto rápida da AIDS.

Milhões de seres humanos estão por ela contaminados. Sua propagação hoje é universal, tendo ocorrido diminuição do incremento de novos casos entre indivíduos pertencentes aos assim denominados ‘grupos de risco’, enquanto é muito maior sua disseminação entre heterossexuais, e, principalmente, entre mulheres heterossexuais.

Há estudiosos que antevêem o risco de, em breve, 60 % da população mundial estar contaminada por ela!

Há também o surgimento das novas questões relacionadas à aproximação da possibilidade de manipulação genética em seres humanos. O Projeto Genoma avança rapidamente no mapeamento completo dos cromossomos humanos. 7

E é evidente que o homem não se prende a argumentos ao adquirir conhecimento e ao se apropriar da possibilidade técnica e concreta de utilizá-lo: conhecer é usar conhecimento.

Portanto, no que tange à manipulação genética em seres humanos, a questão não é a de se ela ocorrerá ou não: é a de qual enquadramento ético em que ela ocorrerá… E, também, como corolário, já que a instituição da lei é, ipso facto, a instituição da transgressão, quais as conseqüências do uso perverso de tal conhecimento, já que, de algum modo, um dia, ocorrerá.

Ao mesmo tempo, novos riscos se apresentam neste instante. Há crise de governabilidade em extensas regiões do globo, generaliza-se o fenômeno da busca de autonomia por parte de grupos étnicos ou culturais (o novo tribalismo) como processo de busca de novas referências de identificação — Naisbitt (1994), ao formular seu paradoxo de ‘quanto maior a economia mundial, mais poderosos são os seus protagonistas menores: nações, empresas e indivíduos’, prevê que o século XXI será constituído por 1.000 países —, há sinais preocupantes de recrudescimento do terrorismo, há a forte possibilidade de perda de controle sobre parte do arsenal nuclear disponível.

Cenas temidas, de pesadelo real, tornam-se mais do que prováveis. Após alguns eventos ocorridos este ano na Alemanha, não há mais dúvida possível quanto à existência de um mercado negro de materiais físseis. Como enfrentaríamos, por exemplo, uma chantagem nuclear de um Cartel de Cali? Que mundo emergiria após a explosão de uma bomba nuclear terrorista sob o World Trade Center de Nova York?

Teremos, portanto, de optar, cada vez com mais freqüência, entre civilização ou barbárie. Não como conceitos abstratos, mas como formas concretas de organização da vida social cotidiana. Haverá, cada vez mais, a necessidade de se pensar estrategicamente as estruturas institucionais das mais diferentes formas de organização social: grupos, famílias, organizações, sociedades, nações, relações internacionais e inter-institucionais.

Mais concretamente, provavelmente, no horizonte dos próximos 50 anos, viveremos num mundo onde civilização e barbárie conviverão lado a lado.

Num mesmo espaço geográfico existirão bolsões civilizados, constituídos por comunidades e organizações que optarem por escolhas éticas e pela construção de instituições multipolares e interpelativas, garantidoras da eqüidade e da integração social de seus membros. Ao seu lado, e já podemos observar hoje em muitas regiões do globo o aparecimento de fenômenos precursores desta tendência, estarão situados espaços cuja característica fundamental será a da indiscriminação institucional, palco da luta de gangues, de bandos de marginais, ou de diferentes correntes de fundamentalismos radicais, e nos quais reinará a anomia, a barbárie, o cinismo, o despotismo, o desprezo mais completo pelo valor da vida humana.

Alguns urbanistas chegam a advertir quanto à inabitabilidade futura dos grandes centros urbanos atuais, dado o crescimento da criminalidade em cidades localizadas em regiões tão diferentes quanto Rio de Janeiro, Washington, Los Angeles, Tóquio e Roma, só para citar algumas.

Não haverá possibilidade de superarmos os desafios da anomia, não haverá como construirmos uma civilização viável, não haverá como garantir estabilidade às sociedades e às organizações, se não estivermos encontrando, a cada dia, com vigor e criatividade, novas formas de equacionamento do mais antigo dos dilemas humanos: os desejos e as necessidades dos seres humanos são sempre abundantes, enquanto as possibilidades concretas de sua realização e satisfação são sempre escassas.

Por isso é inevitável caminharmos na direção de uma sociedade mais aberta, mais multipolarizada, mais interpelativa. Será necessário, cada vez mais, que a sociedade disponha de mecanismos institucionais de confrontação e negociação de conflitos, e na qual a eqüidade possa ser construída através do difícil balanceamento de satisfações e frustrações.

Sem a convicção generalizada dessa eqüidade, os princípios éticos mais basilares à vida social humana são impossíveis de serem estabelecidos.

Só uma sociedade assim será capaz de superar os extremos desafios com os quais já estamos nos defrontando, e que nos farão deparar, a cada passo, e de forma nova, com a secular escolha entre civilização ou barbárie que desde os primórdios dos tempos marcou nossa espécie.

Só as instituições sintonizadas com esse processo sobreviverão.

De um modo dramaticamente novo na história da humanidade, a adesão tanto individual quanto coletiva dos seres humanos às propostas da cultura e da civilização será o fator fundamental que propiciará o salto civilizatório indispensável para que possamos adentrar uma nova era.

Só com base na sinergia dessa adesão é que a Humanidade dará esse salto civilizatório, habilitando-se a construir uma nova página de sua História, e impedindo o retrocesso desordenado à sociabilidade destrutiva das hordas desgovernadas e dos bandos insensatos, sem passado nem identidade.

 

 

Referências bibliográficas

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1 - voltar Este artigo foi escrito em setembro de 1994, com o objetivo de oferecer suporte a serviçcos de consultoria estratégica prestados pelo autor. Posteriormente, foi publicado no site do InterPsic (http://www.interpsic.com.br) em abril de 1997.

2 - voltar Velloso, Marco A. F. Filósofo, psicanalista e Diretor do InterPsic S. C. Ltda. http://www.interpsic.com.br.

3 - voltar No Brasil, segundo estimativas confiáveis, esta taxa de crescimento está em 500% ao ano (dados de 1994).

4 - voltar Hacker: pessoa viciada em computadores com conhecimentos de informática, que pode usar este conhecimento para o benefício de pessoas que fazem uso do sistema ou contra elas. 

5 - voltar Prefiro utilizar o conceito de ‘eqüidade’ no lugar do conceito mais comum de ‘igualdade’, na medida em que, de fato, nas relações sociais, a segunda se constitui numa impossibilidade concreta, dada a diferenciação dos indivíduos. O conceito de ‘eqüidade’ enfatiza, mais especificamente, a necessidade de distribuição equitativa do montante de frustração entre os indivíduos pertencentes a um dado grupo social, já que, do ponto de vista social, desejos e necessidades são sempre abundantes, enquanto a possibilidade de sua satisfação é sempre escassa. Por isso, a satisfação absoluta de necessidades e desejos, é uma impossibilidade existencial para os seres humanos, e a vida social, como já advertia Freud, constitui–se num pesado fardo para os indivíduos que dela participam.

6 - voltar Vd. Outro texto presente neste site.

7 - voltar Os recentes avanços no campo da clonificação de animais superiores só confirma esta afirmação.