Teoria Geral dos Rolos

(‘rolos’, na acepção que Aurélio Buarque de Holanda define como
‘conflito ou briga em que se envolvem numerosas pessoas’)

Marco Aurélio Fernandez Velloso

É freqüente, nas instituições, defrontarmo-nos com certo tipo de situações muito complicadas que, apesar de serem causa de grandes tormentos e de provocarem profundo incômodo, perduram sem solução por longo, muito longo tempo. Na verdade, constituem uma cadeia de realimentação circular de eventos que apresenta como característica principal a entropia: no redemoinho da circularidade, tudo acontece para que nada, de fato, aconteça.

É desse modo que aparecem, para o observador externo, e com mais freqüência do que seria de se desejar, situações de conflitos crônicos em instituições de natureza a mais diversa: conflitos societários, conflitos de sucessão em empresas familiares, situações encapsuladas de indiscriminação de papéis, de falta de definição nas linhas de poder e no processo hierárquico de decisão, e nas quais todo esforço organizativo ou de elaboração estratégica, quando muito, resulta em confusão e mais indiscriminação.

Na maioria dos casos, essas situações esdrúxulas não só afetam o estado de ânimo das pessoas, mas também causam sérios prejuízos materiais, quando não são responsáveis por outros males, incluindo mesmo a geração de problemas de saúde mais ou menos graves.

Diante de casos como esses, é inevitável perguntar: como pode acontecer que pessoas inteligentes e competentes profissionalmente, no pleno domínio de suas faculdades, percam tanto tempo, desgastem tantas energias, e se façam tão mal umas às outras, convivendo em circunstâncias obviamente insalubres de todos os pontos de vista, principalmente do psicológico? É surpreende ver como, compartilhando de condições tão objetivamente incômodas, são, no entanto, incapazes de encontrar para elas soluções minimamente razoáveis.

Os três princípios da Teoria Geral dos Rolos
A teoria geral dos rolos está sustentada em três princípios básicos que agora enumero, e a respeito dos quais, a seguir, tecerei algumas considerações:
1. Todos os rolos começam com ambigüidades e indiscriminações.
2. Os rolos crescem e aumentam na medida em que as decisões com eles relacionadas são parciais, e não levam em consideração a totalidade.
3. Finalmente, quando armados os rolos, eles não se resolvem porque, no meio dos rolos, ninguém aceita perder absolutamente nada!
Formulados os princípios, tentarei comentá-los.

O primeiro princípio: a origem dos rolos
A imensa maioria dos grandes rolos que conheci, começaram de um modo quase imperceptível. Por alguma razão, em um dado momento, uma situação de conflito, em vez de ser encarada e resolvida, ou não foi devidamente identificada, permanecendo num canto obscuro e confuso da consciência, ou foi contornada ou evitada através do expediente da ambigüidade.

Isso pode ocorrer por diversas razões: ou porque as pessoas, pressionadas por outros conflitos, não se sentem com energias para tratar ainda de mais uma situação potencialmente dolorosa e estressante, ou ainda porque não identificam precocemente, ao se depararem com a situação inicial a partir da qual o rolo se inicia, o conteúdo confusional e ambíguo e toda a extensão de seus possíveis desdobramentos, ou também porque, ao se depararem com a ambigüidade inicial do conflito, imaginam que poderão tirar dela alguma vantagem futura, e, por isso, decidem não adotar uma atitude mais clara e interpelativa, que resulte na resolução precoce da situação de falta de limites e de indiscriminação que dá origem a todos os rolos.

O fato é que se instala, a partir daí, uma primeira situação de referência, a partir da qual outros fatos passam a se desdobrar, além de ocorrerem outros acontecimentos que com ela vêm interagir, numa relação acumulativa de mútua implicação e complicação.

É por tudo isso que o primeiro princípio da Teoria Geral dos Rolos afirma que todos eles começam com ambigüidades e indiscriminações.

O segundo princípio: o crescimento dos rolos
A regra inexorável dos rolos é a de se transformarem de um pequeno mal-entendido inicial num equívoco de tamanho e extensão insuportáveis.

Esse processo ocorre na medida em que, sobre o equívoco inicial, vão se sobrepondo, no decorrer do tempo, uma série interminável de outras ambigüidades e indiscriminações. É como o caso do mentiroso contumaz que, para encobrir a primeira mentira, tem que inventar uma outra, e depois mais outra, terminando por não conseguir mais discriminar verdade de fantasia.

Para que os rolos cresçam e aumentem, assumindo sua proporção fantástica, algo de semelhante ocorre.

Em função dos desdobramentos do conflito inicial e de outros eventos que com ele vêm interagir, terminam por se propor inúmeras situações novas que implicam decisões. A função realimentadora ocorrerá na medida em que, para se manter a posição inicial de evitação do conflito, tomam-se decisões parciais, que desconhecem, ou até afrontam explicitamente, a compreensão mais integrada do quadro contextual dentro do qual se encaixam.

Assim, há o crescimento do rolo: e quanto maior ele for, menos disposição há para enfrentá-lo.

O terceiro princípio: a perpetuação dos rolos
Armados os grandes rolos, eles tendem a perpetuarem-se. Há, mesmo, rolos que atravessam gerações …

O que mais surpreende nas situações de rolos é a absoluta incapacidade das pessoas de resolvê-los, apesar de sua indiscutível sinceridade, quando nos afirmam que desejam intensamente sua solução e seu fim.

Por que, então, os rolos não se resolvem espontaneamente?
Na verdade, o fio do argumento que articula todo o drama que se constrói em torno dos rolos é o da negação da perda. E é por isso que os rolos parecem não ter solução: no meio do torvelinho dos rolos, ninguém se dispõe a perder absolutamente nada!

Há um velho ditado que diz que é preferível ficar vermelho cinco minutos do que amarelo a vida inteira. No caso dos rolos, fica-se pálido a vida inteira para não enrubescer por cinco minutos.

É desse modo que, estupidamente, as pessoas continuam acumulando ressentimentos, dançando num baile louco em torno de um espantalho imaginário. Compulsivamente envolvidas no desenrolar de seu drama, desconhecem a dimensão verdadeira da realidade em que estão imersas, já que confundem os desafios e limites reais que ela comporta com perdas e ameaças que só existem em suas fantasias.

Desenrolando rolos
Os rolos começam a ser desenrolados quando, de dentro da obscuridade que os carateriza, surge uma luz: um ou mais dos seus protagonistas envolvidos retomam contacto, por tênue que seja, com a lucidez.
Em geral essa lucidez começa a aparecer quando, do fundo de si mesmas, as pessoas começam a expressar a profunda indignação existencial que sentem com a situação em que se encontram: ‘assim não dá mais’, reconhecem.

Pressuposta a presença desse impulso existencial vital, três são os princípios que presidem o desenrolar dos rolos:
1. Predispor-se a aceitar perdas.
2. Construir um cenário o mais completo possível da situação, estabelecendo com clareza a direção a ser seguida a longo prazo, de modo a orientar com segurança as diversas decisões parciais que se propõem durante a resolução dos rolos.
3. Em cada situação específica, predispor-se a interpelar, com dignidade e objetividade, as pessoas, para discriminar os componentes tácitos, não falados, dos conflitos, dissolvendo a confusão causada pelas ambigüidades e indiscriminações que fizeram surgir os rolos.

Como se pode bem ver, estes três princípios que orientam o desenrolar dos rolos são, na verdade, corolários dos três princípios anteriores, tomados na sua ordem inversa.

De todos, o primeiro, e mais fundamental, é o de predispor-se a aceitar perdas. A verdade, sendo as situações de rolos caracterizadas por ambigüidades e indiscriminações de raiz, o predispor-se a aceitar perdas resultará na constatação de que a maioria delas são mais fantasiadas do que reais. O fato é que o quadro confuso de ambigüidades e indiscriminações cria um espaço cinzento, no qual fantasias irrealistas de ganho — e de sua possível perda — são depositadas, ao mesmo tempo, por todos os participantes do drama, no núcleo dos rolos.

É por isso que, freqüentemente, associadas às situações em que ocorrem os rolos, há expectativas sem alicerce real de apropriação de espaço, de poder, de prestígio ou de bens e de dinheiro.

Predispor-se a aceitar perdas é, na verdade, uma condição essencial para elaborar soluções criativas que tantas vezes resultam em surpreendentes processos de reparação mútua e de construção de bases muito mais saudáveis de cooperação.

Se houver paciência e persistência, e se houver a compreensão de que situações de conflito alimentadas durante muitos anos também necessitarão de algum tempo para serem resolvidas, é possível esperar que a complicação aparentemente insolúvel dos grandes rolos seja equacionada e superada com surpreendente simplicidade.

Para isso é importante resgatar o direcionamento estratégico perdido, predispor-se a falar e a ouvir as pessoas, adquirir coragem para reconhecer a verdade.

Coisas singelas mas difíceis, como sempre é o transitar do óbvio para o simples.

 

 Artigo publicado no site do InterPsic: http://www.interpsic.com.br/saladeleitura/texto11.html , São Paulo. 1.997