De portas abertas:
uma experiência de atendimento
em saúde mental
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Lúcia Filomena Carreiro, Ivani Euvedeira, Ana Paula Nassirios,
Eliana M. D. Rodrigues, Drauzio Viegas Jr. 2

Introdução

O atendimento aos portadores de transtornos mentais é e continuará sendo, ainda durante muito tempo, um verdadeiro desafio para a sociedade.

Segundo o “Relatório Sobre a Saúde no Mundo 2001: Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança”, publicação oficial da Organização Pan-Americana da Saúde - OPAS e Organização Mundial da Saúde - OMS, os transtornos mentais afetam, em alguma fase da vida, mais de 25% da população, trazendo conseqüências econômicas para a sociedade e interferindo no padrão de vida das famílias. O relatório aponta que 20% de todos os pacientes atendidos na atenção primária de saúde tenham um ou mais transtornos mentais e comportamentais e que “uma em cada quatro famílias tem pelo menos um membro que sofre atualmente um transtorno mental ou comportamental” (pág. 51).  Estes transtornos “já representam quatro das dez causas de incapacitação em todo o mundo. Esse crescente ônus vem a representar um custo enorme em termos de sofrimento humano, incapacidade e prejuízos econômicos.” (pág. 27)

O transtorno mental é historicamente marcado pelo estigma social. O portador de transtorno mental é remetido ao papel de bode expiatório, sofrendo exclusão em função da negação que a comunidade faz de sua própria loucura. Em razão disso, a loucura é inteiramente depositada nele para que, por oposição, a comunidade possa se considerar sadia.

Pessoas portadoras de graves transtornos psíquicos, por apresentarem dificuldade no trato com a realidade, apresentam um quadro de vínculos sociais e afetivos rompidos ou correm o risco de virem a sofrer essa ruptura em decorrência da evolução de sua patologia.

É nessa dinâmica que o processo de exclusão se instala e se desenvolve. Progressivamente, o espaço social do paciente vai sendo reduzido, começando pelas relações de sociabilidade secundária, até que, ao final, termina por sofrer exclusão no seio de seu próprio grupo primário.

No estágio atual do capitalismo — na cauda do aparecimento da sociedade da informação e do conhecimento, e de uma economia globalizada e altamente competitiva —, se instala, numa dimensão planetária, o desemprego estrutural, resultando na exclusão de um número cada vez maior de seres humanos do ciclo produção-consumo. Essa exclusão tem por alvo preferencial a parcela da população que não teve acesso aos bens sociais em geral e, particularmente, a uma educação básica competente.

Desse modo, na parcela da população menos favorecida econômica e culturalmente, o transtorno mental se torna uma incompetência a mais, desequilibrando seriamente o potencial competitivo no mercado de trabalho.

No caso de pessoas portadoras de graves transtornos psíquicos, o tipo de tratamento exigido é complexo e pede uma intervenção para além do simples atendimento ao indivíduo, envolvendo sua esfera familiar e social.

Mais especificamente ainda, quando se trata de viabilizar o tratamento para os portadores de transtornos mentais pertencentes à camada mais desfavorecida da sociedade, a atividade clínica tem que abordar também, necessariamente, a exclusão social e econômica e enfocar o resgate das suas capacidades produtivas.

Nessa perspectiva, no final deste texto, partindo da experiência que adquirimos no tratamento de portadores de transtornos mentais no Hospital-Dia de Campo Limpo, formulamos uma proposta de inclusão das pessoas pertencentes a este dramático contexto de exclusão, que se sustenta no conceito de que é possível ser diferente sem ser excluído e que tal inclusão deve acontecer na trama vincular cotidiana, isto é, a partir da rede de relações vinculares que o indivíduo for capaz de estabelecer e manter, desde as mais próximas – familiares – até chegar às relações sociais mais distantes e mais valorizadas socialmente.

Ao abrimos as portas de nossa experiência para compartilharmos um pouco do que realizamos e refletimos como trabalhadores de saúde mental num hospital-dia da periferia da cidade de São Paulo, achamos necessário dar uma visão panorâmica do contexto histórico mundial em que essa experiência emerge. À medida que nos vamos aproximando temporal e geograficamente de nosso foco principal, nossa descrição torna-se mais detalhada e enriquecida pela vivência. Aqui o leitor poderá vislumbrar o que foram as portas abertas a que nos referimos no título desse trabalho.

Cenário histórico: da loucura ao transtorno mental

A loucura possui formas diversas de inserção social, em consonância com ideologias, práticas e teorias operadas em determinados contextos históricos.

As pessoas “loucas” não passaram ilesas na história da humanidade. Tratadas muitas vezes com indignidade, ainda despertam nos dias de hoje estranheza e medo. A história da loucura faz parte da história da exclusão social.

A fonte principal de informação que utilizamos para essa viagem através da  história da loucura são os livros Psiquiatria sem Hospício, dos organizadores Bezerra Jr e Amarante, e A Ordem Psiquiátrica: A Idade de Ouro do Alienismo, de Castel. É claro que  História da Loucura, de Foucault, subjaz, de forma definitiva, na concepção contemporânea da maioria dos autores que se propõem a contar essa história.

Na Idade Média, a Igreja tomou para si o exorcismo dos “demônios humanos”, ateando fogo aos bruxos e bruxas. Divide o poder com a nobreza e, para manter a ordem social, tutela os infortunados e os doentes da sociedade - dentre estes, os loucos - que, quando não incomodavam, viviam livres.

Na transição pré-capitalista ocorrem profundas mudanças sócio-político-econômicas. Os espaços social e de trabalho se modificam. Consolida-se o processo de segregação de todos os suspeitos que ameaçam a ordem social - mendigos, doentes (principalmente de sífilis e hanseníase), loucos, ociosos, prostitutas, saltimbancos. Prisões, depositários, casas de correção e interdição jurídica para os insanos são dispositivos institucionais criados para retirar de circulação os inoportunos sociais.

Temos em curso dois processos revolucionários que marcaram a humanidade, transformando a História: a revolução Francesa e a Industrial.

No século XVIII o iluminismo e o racionalismo, que davam os referenciais ideológicos à Revolução Francesa, criavam um individualismo secular, racionalista e progressista, libertando o indivíduo do tradicionalismo ignorante da Idade Média e da submissão à superstição da igreja.

Já a Revolução Industrial influenciará o mundo econômico do século XIX. A máquina impõe ao homem um novo ritmo de trabalho, modifica as cidades e desintegra muitos laços sociais. Neste período revolucionário, na Europa, registra-se o aumento da população de marginalizados — os ociosos e improdutivos: loucos, indigentes, mendigos, prostitutas.

No Século da Razão, a busca de soluções para a irracionalidade, representada pela marginalização, se fundamenta na própria Razão. Assim, o controle passa a ser exercido através de leis sociais, que dão racionalidade aos problemas sociais.

Da mesma forma, a loucura também era vista a partir do viés da Razão, isto é,concebida como perda da mesma, adquirindo o status de doença mental, e o tratamento moral objetivava o retorno à Razão. Para tanto, faziam-se necessários espaços protegidos, calmos, higiênicos - os hospícios - para devolver a Razão àqueles que a tinham perdido, através da reeducação pelo trabalho, como meio de recuperação da dignidade e da responsabilidade.

Castel (pág. 55) 3 observa que a passagem da loucura para o âmbito médico traz como conseqüência um novo status jurídico, social e civil para o louco: o de alienado, juridicamente incapaz, relegado à condição de minoridade.

Através do movimento dos alienistas, com Pinel (França), Chiarruggi (Itália), Tuke (Inglaterra) e Todd (Estados Unidos), nasce o Hospício como instância oficial da institucionalização da loucura e de uma nova relação social de tutela. Com o nascimento do Hospício, surge a psiquiatria como especialidade médica, ordenando o espaço hospitalar, classificando e separando doentes em função de uma nosografia médica. A loucura, tomada agora como doença mental, deixa de ser “desgraça natural”, mas isso não significa, para a pessoa doente, libertação (Castel pg 83) 4 .

Até perto do final do século XIX a doença mental é compreendida, quase que exclusivamente, como alteração bio-físico-química do organismo. A psiquiatria já contava com um incipiente corpo teórico que lhe permitia classificar as doenças mentais, teorizar sobre a demência precoce (esquizofrenia) e outros aspectos da psicopatologia.

Dada a inexistência, ainda, dos psicofármacos, o inusitado que a doença mental manifestava era tratado com camisas-de-força, amarras, cadeiras giratórias, hidroterapia, e, mesmo, com castigos corporais; tentativas terapêuticas que acarretavam grande sofrimento humano.

Freud, no final do século XIX, com a psicanálise, realiza o salto no saber médico e psiquiátrico.“No tempo de Pinel a cura significava resolver o equívoco, corrigir os erros da razão, voltar a pensar como os outros, os razoáveis. Freud subverte essa noção de loucura, diz que o delírio é uma forma de dar sentido a uma experiência psíquica. Sendo assim, não há o que ser corrigido. Há o que ser escutado. Não há o que ser abolido. Há o que ser recuperado. Há o que ser construído. Com Pinel podíamos pensar: todos devem ser iguais. Aquele que se perde num descaminho, na desrazão, deve ser trazido de volta para a estrada real da razão. Com Freud podemos pensar: não somos iguais, há muitos diferentes. Há muitas diferenças. É preciso tratar do sofrimento decorrente da diferença, quando é o caso, sem no entanto aboli-la.” 5

A pesquisa orgânica no âmbito da psiquiatria continuou seu percurso com uso de cardiazol, insulinoterapia, inoculação de cepas benignas de malária, eletroconvulsoterapia , lobotomia, culminando com a descoberta dos neurolépticos, na metade do século XX, que mudou substancialmente o tratamento das psicoses.

Embora desde a metade do século XIX o alienismo já sofresse críticas, com uma crescente consciência de que o hospital psiquiátrico ocupava um lugar de cronificação, só após a segunda guerra mundial diversos movimentos teóricos e práticos surgiram e se desenvolveram em várias cidades de diferentes países em busca da reforma psiquiátrica. Laing e Cooper (Inglaterra), Goffman (EUA), Foucault (França), Basaglia (Itália), são expressões desse processo 6 .

O século XX apresentou grandes avanços na área do tratamento dos transtornos mentais: surgiram novos medicamentos e várias experiências terapêuticas inovadoras se consolidaram, apontando para a possibilidade da inclusão do transtorno mental na trama social. Entretanto, nos dias de hoje, ainda há um domínio do modelo organicista nas práticas clínicas em saúde mental.

Cenário Nacional

No Brasil, a história do trato da loucura se assemelha ao que nos referimos no cenário histórico global, embora com alguns séculos de defasagem. Quem nos diz isso e tantas outras coisas a que nos referimos em grande parte deste capítulo é Heitor Resende no livro Cidadania e Loucura – Políticas de Saúde Mental no Brasil, cujos organizadores são Tundis e Costa.

No período colonial, o louco foi relativamente tolerado e assimilado cotidianamente. No entanto, no final do século XVIII, com o re-ordenamento do processo produtivo e das cidades, ele passa a ser considerado um problema social, ao lado de outros perturbadores da ordem e, portanto, deveria ser retirado do convívio social. Inicialmente eram recolhidos às prisões ou às Santas Casas de Misericórdia, instituições de caráter punitivo.

O primeiro manicômio do Brasil foi inaugurado por D. Pedro II, no Rio de Janeiro, em 1852, sendo que a assistência oferecida quase se restringia a abrigar o louco que ameaçava a ordem e a paz social.

A abolição da escravidão e a proclamação da República trouxeram consigo um especial interesse pela saúde pública, pois era preciso sanear as cidades para atrair os imigrantes estrangeiros. Nesse período, com o Dr. Juliano Moreira na direção do Hospício Nacional no Rio de Janeiro e o Dr. Franco da Rocha no Juqueri em São Paulo, a atenção ao doente mental ganhou caráter científico; foi organizada a primeira classificação brasileira de doenças mentais e a primeira estatística para caracterizar a população de internos.

Do ponto de vista terapêutico, o trabalho era considerado uma importante estratégia, e as colônias agrícolas o meio para atingir o objetivo de desenvolver o indivíduo, tornando-o apto para o desempenho de atividades produtivas.

Em 1950 a OMS, através de um comitê de peritos em saúde mental, recomendou aos países-membro, especialmente aos países em desenvolvimento, que investissem em ações nesta área, devido ao alto custo da doença mental para o processo produtivo. Apesar disso, no Brasil, ao final da década de 1950, como resultado da falta de investimentos financeiros, a situação era caótica, com os hospícios superlotados, falta de pessoal, condições das instalações e hotelaria precárias. Abundavam violência e maus tratos.

A partir de 1964, com o golpe militar, a solução e opção política, frente à insuficiência de leitos em hospitais psiquiátricos da rede pública, foi a contratação de leitos em hospitais privados.

Apesar de a década de 1970 ainda estar marcada por uma conjuntura de repressão política, foi a partir daí que o movimento conhecido como “reforma psiquiátrica” — à luz das experiências internacionais que se seguiram às propostas da antipsiquiatria — logrou introduzir-se e ampliar seu campo de influência no Brasil. Desde esta década, desenvolve-se o debate das idéias que defendem a ruptura com a cultura manicomial.

Em 1972, em Santiago do Chile,  Ministros de Saúde de países latino-americanos, inclusive do Brasil, elaboraram um documento com os princípios básicos que deveriam nortear a assistência psiquiátrica nesses países, o qual recomendava: “diversificação na oferta de serviços e sua regionalização, condenava o macro hospital, propunha alternativas à hospitalização integral, ações especiais dirigidas ao egresso e campanhas para reabilitação dos crônicos (...)” 7 . Mas, com o fim do “milagre econômico” e os alarmantes índices de outros indicadores de saúde — como crescimento da morbidade e mortalidade infantil, epidemia de meningite, aumento de incidência de casos de tuberculose e doenças crônicas degenerativas — a assistência ao doente mental perde a ênfase que naquele momento lhe fora atribuída.

Os movimentos sociais contra o regime militar, no final da década de 1970, foram um importante marco para a denúncia e a tomada de consciência acerca das condições violentas e não terapêuticas a que os doentes mentais dos hospícios públicos estavam submetidos. Foram abertos os chamados “porões dos hospitais psiquiátricos” para a sociedade, inclusive por intermédio da mídia. A eclosão de tal movimento deveu-se a um quadro de distensão política, após quase duas décadas de regime militar, refletindo a reorganização de diversos setores da sociedade.

A partir daí, várias reformas e programas foram propostos para a reorganização da saúde em relação a alguns pontos básicos: financiamento, práticas ou modelos assistenciais e critérios de acesso ao atendimento.

Dentro deste contexto, novos projetos de assistência na área de saúde mental foram criados, embora, não raras vezes, tenham sido bruscamente interrompidos. Multiplicam-se experiências positivas na reforma psiquiátrica, ou seja, há um intenso movimento de inovação, com concepções e tratamentos diferentes para os portadores de transtornos mentais, e um debate cada vez mais presente em alguns setores da sociedade.

O debate quanto ao sistema de saúde teve um marco importante em 1986, com a VIII Conferência Nacional de Saúde que influenciou a Constituição de 1988 na criação do Sistema Único de Saúde (SUS), com acesso universal.

Em 1987 foi realizada a Primeira Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, que desfraldou a bandeira: “por uma sociedade sem manicômios”.

Na reverberação desse movimento, que envolve trabalhadores de saúde mental, pacientes, familiares e políticos, surge o Projeto de Lei n° 3657 do Dep. Paulo Delgado (1989), propondo a reformulação das bases legais para a assistência psiquiátrica com uma concepção não manicomial, que prevê a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outras práticas terapêuticas.

Em 1990, ocorreu em Caracas, Venezuela, a Conferência Regional para a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica na América Latina dos Sistemas Locais de Saúde, cuja declaração final tornou-se norteadora das mudanças nas legislações dos países participantes, para assegurar o respeito aos direitos humanos e civis dos pacientes e as transformações do Modelo de Atenção à Saúde Mental.

Essas idéias continuam presentes no contexto da década de 90, em que convivem tendências em busca de uma sociedade sem manicômios com práticas psiquiátricas tradicionais. Ainda existem asilos e colônias em todos os estados do país, com inúmeros moradores; e uma parcela da população, portadoras dos mais variados tipos de sofrimento psíquico,  tem dificuldade de inserção na rede de atendimento.

Os livros: Reabilitação Psicossocial no Brasil , cuja organizadora é Pita, e Tecendo a Rede Trajetórias da Saúde Mental em São Paulo 1989-1996, organizado por Vieira, Vicentin e Fernandes, contribuem para a discussão e divulgação de experiências inclusivas, em curso no país.

Apesar dos efeitos da recessão econômica, da crise do Estado e dos sucessivos avanços e recuos na implementação de um projeto não manicomial, diversas experiências concretas vêm sendo realizadas em todo o país, baseadas em variadas concepções.

Muitas dessas experiências procuram integrar o modelo assistencial de tratamento à reabilitação psicossocial, com oficinas de trabalhos, cooperativas, expressão artística, residências terapêuticas, entre outros.

As associações de usuários de serviços de saúde mental, de seus familiares e dos trabalhadores em saúde mental têm se multiplicado, buscando autonomia em relação ao Estado. O número de leis e portarias, federais e estaduais, inspiradas nos princípios da reforma psiquiátrica também cresceu.

Todas essas movimentações são indicadores de mudanças no campo da Saúde Mental no Brasil. No entanto, só a perspectiva do tempo permitirá uma avaliação mais integrada.

Assim, com seu contexto de globalização econômica e incremento da exclusão social, este início de milênio está marcado por um ambiente de paradoxos e de perplexidades, onde a questão da cidadania assume, cada vez mais, um papel central, com implicações evidentes para as práticas de saúde mental.

Neste quadro, a questão da inclusão dos portadores de transtornos mentais na sociedade assume, a cada dia, maior dramaticidade e importância.

Cenário Regional

As primeiras influências

Neste momento de aproximação do nosso enfoque principal, tomaremos como referência os textos “Uma Experiência de Saúde Mental na Prefeitura de São Paulo” de Antonio Carlos Cesarino no livro SaúdeLoucura 1; A Clínica da Psicose: Um Projeto na Rede Pública de Jairo Goldberg; “Política de Saúde Mental Democrática e Popular” do Centro de Organização da Atenção à Saúde - Programa de Saúde Mental - Secretaria de Saúde da Prefeitura Municipal de São Paulo de 1989; e Normatização Técnica dos Serviços de Saúde Mental, expedida em 1992 pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo.

Até a década de 70, no ambiente regional de São Paulo, a ênfase dada no tratamento das doenças mentais ainda era o Hospital Psiquiátrico com suas características cronificantes e de exclusão social. A Grande São Paulo contava com quatro hospitais psiquiátricos estaduais, sete particulares (em convênio com o Estado), quarenta particulares (conveniados ou não com o INAMPS) e um pequeno número de Ambulatórios de Saúde Mental, que trabalhavam de forma isolada, oferecendo basicamente atendimento psiquiátrico medicamentoso.   8

Na década de 1980, o país vivia um clima de abertura político-democrática, com o restabelecimento de eleições diretas para governadores de estado. Nesse período foram definidas reformulações, em âmbito federal, do Sistema de Saúde Pública. Em São Paulo, as políticas de Saúde Mental também começaram a seguir novos rumos.

Um primeiro projeto, de abrangência estadual, foi o Programa de Saúde Mental, proposto e implantado no ano de 1983 pelo Governo Franco Montoro.

Este programa teve como objetivo deslocar a posição central do hospital psiquiátrico no atendimento aos pacientes, com a criação de uma rede de serviços extra-hospitalares ampliada e reorganizada, baseada nos princípios de regionalização, hierarquização, integração, universalização e eqüidade, que norteavam as ações de Saúde Pública. 9

Esta rede de serviços articulava Centros de Saúde, Ambulatórios de Saúde Mental e Hospitais Psiquiátricos. Os pacientes podiam ser encaminhados de um serviço ao outro e vice-versa (referência e contra-referência), de acordo com o grau de complexidade episódica do quadro apresentado ou de sua remissão.

Os Centros de Saúde contavam com equipes mínimas de saúde mental (psiquiatra,  psicólogo e assistente social) que atendiam à demanda de menor gravidade e desenvolviam ações integradas com outros programas de saúde da unidade (mulher, criança, etc...) de caráter basicamente preventivo - o chamado nível primário de atenção à saúde.

O nível secundário era compreendido pelos Ambulatórios de Saúde Mental, compostos por equipes multi-profissionais, atendendo casos de maior gravidade, tanto relacionados à infância como aos adultos. O Ambulatório era o principal equipamento da rede extra-hospitalar para o atendimento de psicóticos, neuróticos graves, alcoolistas, epilépticos e egressos de Hospitais Psiquiátricos.

Do ponto de vista do atendimento, foram introduzidas novas técnicas e modalidades terapêuticas que ultrapassavam os limites do acompanhamento individual e medicamentoso: grupos de psicoterapia e terapia ocupacional para psicóticos, grupos psicoterápicos para alcoolistas, atendimento familiar, etc.

Em alguns ambulatórios estruturou-se o PIM - Programa de Intensidade Máxima, destinado aos quadros agudos. Propunha a vinda diária do paciente ao ambulatório, estimulando a criação de vínculos dos pacientes entre si e com a equipe terapêutica, visando a redução das internações. Propiciavam também atividades sócio-culturais e de suporte social. Ao fim da crise, os pacientes eram agendados para seguimento no próprio ambulatório. 10

Completando esta rede, o nível terciário compreendia as internações em hospitais psiquiátricos.

Foi criada, no governo Montoro, a central de vagas que recebia as solicitações de internação dos serviços de saúde e, após avaliação de um perito, autorizava ou não a internação. As solicitações eram exclusivas dos serviços de saúde especializados e eram feitas em guias padronizadas - Autorização de Internação Hospitalar (AIH) -  com senhas para garantir a lisura do processo. Esse mecanismo foi implementado com o objetivo de controlar as internações em hospitais fechados e coibir abusos (internações desnecessárias).

Esta nova prática de atenção à saúde mental, implementada pelo governo estadual, influenciou positivamente a rede municipal de São Paulo: a Secretaria de Higiene e Saúde — em integração com o Estado, INAMPS e Santa Casa de Misericórdia de São Paulo — criou, em 1983, o "Projeto Zona Norte". O Estado e o Município contribuíam com recursos humanos e equipamentos, o INAMPS com financiamentos; a Santa Casa integrava tais atividades em seu trabalho de formação e qualificação de pessoal.

Com este projeto, a Prefeitura de São Paulo participa, pela primeira vez, da estruturação e implantação de um modelo de atenção à saúde mental.

A zona norte — Freguesia do Ó — foi escolhida por contar com equipamentos e porque ali existia, em andamento, um projeto docente-assistencial da Cadeira de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. 11

Esse projeto, embora considerado tecnicamente bom, seguindo modernos parâmetros de tratamento ao doente mental, não resiste às mudanças político-administrativas estaduais e municipais, e sucumbe ao desmantelamento de toda a sua estrutura.

A avaliação deste projeto levanta algumas questões importantes: de um lado, a comprovação de que é viável oferecer serviços de qualidade no âmbito público; de outro, e mais uma vez, a constatação da fragilidade dos argumentos técnicos frente a interesses políticos; finalmente, a importância da efetiva participação da comunidade no processo, de modo a legitimá-lo e consolidá-lo.

Felizmente, outras experiências semelhantes continuam sendo implantadas, encampando os conhecimentos adquiridos até então e propondo aperfeiçoamentos. Em 1987 foi criado pelo Governo do Estado de São Paulo o Centro de Atenção Psico-Social (CAPS). Em 1989 a Prefeitura do Município de Santos inicia a implantação dos Núcleos de Atenção Psico-Social (NAPS). Cidades como Botucatu e Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, também implantam serviços semelhantes.

No município de São Paulo, com a nova mudança administrativa em 1989, já se conformando aos princípios da Constituição de 1988, o papel da Prefeitura com relação à responsabilidade com a saúde geral da população é revisto e ampliado. Deixa de ser quase que exclusivamente preventivista, passando a ter ações integradas a partir de levantamentos epidemiológicos regionalizados e planejamento estratégico.

O atendimento à população ganha outra dimensão nas esferas de prevenção e tratamento, com descentralização e regionalização dos serviços oferecidos. A comunidade passa a ter papel ativo em discussões, em tomadas de decisão e atua como agente fiscalizador.

Na saúde mental, começa a ser implantada uma rede assistencial que recupera alguns princípios do Projeto Zona Norte sem, entretanto, a integração entre Estado e Município.

A saúde mental no Município de São Paulo,

de 1989 a 1995

Quanto mais nos aproximamos de nosso foco principal mais as informações colhidas se misturam com as informações vividas, direta ou indiretamente. Para falar do modelo de saúde mental implantado no período acima, nos valemos do documento “Política de Saúde Mental Democrática e Popular”, elaborado pelo Centro de Organização da Atenção à Saúde – Programa de Saúde Mental, da Secretaria de Saúde da Prefeitura Municipal de São Paulo de 1989, porém nossa leitura desse documento está impregnada de nossa história pessoal.

Fig. 1 - Modelo de atenção à saúde mental proposto para o Município de São Paulo em 1989. 12

O modelo implantado a partir de 1989 propunha uma rede integrada de atendimento (Fig. 1) envolvendo vários equipamentos, o que possibilitou mudança qualitativa no atendimento do paciente e de sua família, criando alternativa efetiva às internações em hospital psiquiátrico.

A Unidade Básica de Saúde (UBS) era a referência de tratamento do paciente. Contava com uma equipe multiprofissional que, além do atendimento à saúde mental, dava assistência aos projetos gerais da unidade.

Nos momentos de agravamento de quadros psíquicos que exigissem atenção mais intensiva ou quadros onde fosse necessário um suporte psicossocial, a UBS podia contar com a retaguarda de outros equipamentos da rede.

Os Centros de Convivência e Cooperativas (CECCOs) eram espaços de convivência para a população em geral, que visavam a reintegração social dos excluídos, e tinham um papel importante para a saúde mental.

O Hospital e Pronto Socorro Geral ofereciam atendimento de emergência psiquiátrica, com leitos de observação de até 72 horas. Quando fosse avaliada a necessidade de contenção em período integral, o paciente era encaminhado para internação de curta duração em enfermaria do Hospital Geral ou Hospital Psiquiátrico. Se houvesse suporte familiar e/ou social e indicação de internação parcial, era encaminhado ao Hospital-Dia (HD).

Havia também a proposta de lares abrigados para pacientes crônicos sem referências sócio-familiares, mas sua implantação não foi efetivada.

Em virtude de dificuldades administrativas para contratação de pessoal, compra de equipamentos e aquisição de espaço físico, o funcionamento de vários desses serviços ocorreu tardiamente na gestão de Luiza Erundina, tanto que só no último ano de sua gestão é que o HD de Campo Limpo iniciou seus atendimentos.

A partir de 1993, já na gestão de Paulo Maluf, começamos a observar um desinvestimento na saúde em geral, com a conseqüente perda de profissionais, falta de recursos materiais, corte de recursos financeiros e corte de supervisão clínica e institucional, determinando a descaracterização de todo o sistema de referência e contra-referência, essencial para que o modelo de atendimento em rede na saúde mental fosse mantido.

Após esse sucateamento deliberado, em 1995, a prestação de serviços de saúde do município é avaliada pela própria Prefeitura como ineficiente, e a causa é atribuída à estrutura do serviço público. Como solução, a Prefeitura resolve implantar o Plano de Assistência à Saúde (PAS).

O PAS propunha o gerenciamento dos serviços de saúde do município pelo sistema de cooperativas de profissionais, com repasse de verbas públicas, bens móveis e imóveis e recursos materiais para as mesmas.

Projeto polêmico que, para nós, trabalhadores de saúde, inseridos no sistema de atendimento da rede pública, exigiu um posicionamento concreto que implicou em inúmeras conseqüências em nossa vida pessoal e profissional e se fundamentava numa múltipla dimensão existencial: ética, política e técnica.

Esse posicionamento implicou na nossa recusa em participar do PAS, assumindo, como conseqüência inevitável, a decisão de abdicar do trabalho que vínhamos realizando no Hospital Dia do Campo Limpo.

Na forma como vimos a apresentação do PAS, consideramos que caracterizava uma falsa solução para os problemas que vinham ocorrendo na saúde pública, uma espécie de maquiagem político-eleitoral construída sobre uma intenção de base que era a da desmontagem do sistema público de prestação de serviços de saúde à população, desvirtuando, inclusive, a própria concepção de cooperativismo pela forma autoritária como foram impostas e formadas as cooperativas.

No período de existência do PAS, que foi de aproximadamente 6 anos, várias denúncias de corrupção foram divulgadas na mídia e vários processos (em sua maioria de suspeição de desvio de dinheiro) tramitaram na justiça contra várias cooperativas do PAS.

No atendimento ao paciente observou-se uma deterioração da assistência em geral, com falta de distribuição de medicamentos, redução no acesso a exames laboratoriais e consultas médicas e centralização dos atendimentos nos profissionais médicos. Na área da saúde mental, apesar da maioria dos equipamentos destinados ao atendimento terem sido mantidos, houve descaracterização do modelo original de atendimento em rede.

Com a mudança político-administrativa em 2000, o PAS foi extinto e a proposta de implementação do SUS no Município de São Paulo foi retomada.

O modelo de HD na gestão Luiza Erundina

Na gestão de Luiza Erundina (1989-1992), como vimos, foi iniciada a implantação de um modelo inovador de atenção à saúde mental para o Município de São Paulo.

A proposta de criação de Hospitais-Dia em Saúde Mental representava uma tentativa de concretização, no Município de São Paulo, das novas idéias relacionadas ao atendimento aos portadores de transtornos mentais em crise, constituindo-se numa alternativa à internação psiquiátrica tradicional, tantas vezes responsável pela cronificação do quadro patológico dos pacientes.

Na Normatização Técnica dos Serviços de Saúde Mental à qual nos referiremos ao longo deste capítulo, o Hospital-Dia é definido como “equipamento de saúde indicado para o tratamento de casos em momentos de sofrimento psíquico intenso que configurem uma situação de crise (grau intenso de comprometimento funcional, desestruturação familiar e/ou social)”. 13

Para viabilizar a implantação dos Hospitais-Dia, a Coordenação de Organização da Atenção à Saúde (COAS) constituiu um grupo de trabalho, integrado por representantes de trabalhadores em saúde mental de nível universitário das diversas regiões do município, onde tais unidades de atendimento seriam implantadas. O HD do Campo Limpo também tomou parte nessas discussões.

Previa-se tratamento intensivo de curta duração: o tempo de permanência dos pacientes nos HDs, na Normatização Técnica, era de 45 a 60 dias para adultos, e de 180 dias para crianças. O atendimento diário seria de três períodos, de segunda a sexta-feira. Os parâmetros quantitativos de atendimento de cada unidade seriam estabelecidos pelos Distritos de Saúde em função do espaço físico disponível e da constituição da equipe de profissionais.

Neste texto vamos nos restringir aos Hospitais-Dia de adultos e adolescentes.

Ainda do ponto de vista da proposta original, no que se refere aos critérios de admissão, o atendimento dessas unidades estaria voltado para neuróticos graves e psicóticos agudos, prioritariamente de primeiro surto, com suporte familiar e/ou social. Os pacientes crônicos só seriam atendidos nos momentos de agudização. Estavam excluídos quadros de alcoolismo e drogadição primária, de deficiência mental, e neurológicos. Pacientes que demandassem atenção de 24 horas/dia, como os de auto e hetero-agressividade intensa, acentuado risco de suicídio, graus intensos de agitação psicomotora, assim como os quadros clínicos graves, não seriam atendidos pelos HDs, sendo encaminhados para serviços de referência adequados, até que pudessem ser admitidos no regime de Hospital-Dia.

O tratamento proposto enfatizava as atividades grupais para o paciente e seus familiares, sem excluir o atendimento individual.

Algumas das atividades previstas eram padronizadas, tais como: grupo de reencontro e grupo de preparação para o fim de semana, assembléia, grupos terapêuticos, grupos de atividades sócio-culturais e esportivas — internas e externas —, espaço de convivência, grupos de família, visitas domiciliares quando necessárias, assim como os atendimentos individuais de acordo com a necessidade de cada caso, além das atividades de rotina.

O quadro de pessoal previsto para o atendimento de 40 pacientes/dia, num período de 12 horas/dia, seria constituído por 6 psiquiatras, 4 psicólogos, 4 terapeutas ocupacionais, 2 assistentes sociais, 2 enfermeiros, 4 auxiliares de enfermagem e 1 auxiliar de farmácia, assim como pessoal administrativo e de serviços gerais.

Ainda de acordo com a normatização, estava prevista a contratação de supervisão para o acompanhamento das equipes de profissionais.

O Hospital-Dia do Campo Limpo: Operacionalizando o modelo

“De onde era que o Dito descobria a verdade dessas coisas? Ele estava quieto, pensando noutros assuntos de conversa, e de repente falava aquilo. – “De mesmo, de tudo, essa idéia consegue chegar em sua cabeça, Dito?” Ele respondia que não. Que ele já sabia, mas não sabia antes que sabia.”
Guimarães Rosa – Manuelzão e Miguilim

A operacionalização do modelo no Campo Limpo foi marcada por duas ordens de determinações: as características do ambiente urbano em que se inseriu e as possibilidades e limitações concretas do espaço físico disponível para o trabalho.

A equipe de profissionais foi obrigada a conviver com os limites que esta situação comportava, e foi desafiada a rever seus próprios referenciais de trabalho para responder de modo criativo ao contexto concreto com o qual se defrontava.

Esta interação entre condições concretas e atitude da equipe de profissionais conferiu ao HD do Campo Limpo algumas características operacionais específicas e uma identidade própria.

Do ponto de vista urbano, a região de Campo Limpo está situada na zona sul da cidade de São Paulo, que englobava dois Distritos Municipais de Saúde, comportando uma população de aproximadamente 800.000 pessoas, segundo estimativas baseadas em dados do IBGE de 1980. É uma das regiões mais pobres da cidade, com alta concentração de favelas, alto índice de criminalidade, baixa oferta de oportunidades de emprego, e, de um modo geral, com poucos recursos comunitários sociais e de lazer.

A característica mais marcante dos pacientes que acorrem ao atendimento no HD, provenientes desse ambiente de pobreza da periferia da grande metrópole que é São Paulo, é a marginalização.

De um ponto de vista demográfico, eram em sua maioria jovens (de 18 a 30 anos), migrantes ou filhos de migrantes, a maioria com primeiro grau completo ou quase completo, alguns até com segundo grau incompleto, pouca qualificação profissional, pertencentes a famílias de baixa renda, habitando moradias precárias, com poucas condições de saneamento básico e higiene.

Da perspectiva da disponibilidade de espaço físico, o Hospital-Dia do Campo Limpo foi instalado no mesmo edifício da UBS do Jardim Lídia, em área inicialmente prevista para a implantação de um posto de pronto atendimento (pequena unidade de atendimento a emergências). Houve necessidade de superação de dificuldades decorrentes de adaptações de um imóvel construído para outra finalidade, a começar por uma distribuição arquitetônica dos espaços que terminava por introduzir o paradoxo da falta de espaço concomitante com o desperdício dele. Era um espaço ao mesmo tempo adaptado e pobre, com dificuldades de circulação, poucos consultórios, com banheiros mal distribuídos — já que seu uso ficava impossibilitado durante os trabalhos de grupo —, e falta de salas de trabalho, obrigando à sua dupla utilização (sala de Terapia Ocupacional que, nos horários de refeições, era também Refeitório). Além disso, o expurgo e esterilização da UBS estavam situados dentro do espaço do HD, o que implicava em risco de contaminação e em diversos incômodos cotidianos.

Mas a conseqüência mais interessante foi o fato de que a implantação do HD em área contígua à da UBS contribuiu para a definição de uma característica que o diferenciou, a partir de seu espaço físico, dos demais HDs de São Paulo: a operação em regime de livre acesso, que o transformou num hospital de saúde mental de portas abertas.

Portas abertas é verdade, mas nem tanto assim. O limite físico (portas fechadas) não existia. No entanto, existia, na equipe, a constante tensão pelo controle dos pacientes, já que, na prática, ocorriam saídas não “contratadas”, que eram compreendidas como fugas.

Havia o conflito entre concepções ideológicas opostas em relação à inserção social e ao tratamento do portador de transtorno mental que povoava, nesta época, o imaginário dos profissionais de saúde mental. Conflito esse que se expressava, nos seus extremos, através de uma postura tradicional e ainda hegemônica que concebe o tratamento em hospitais psiquiátricos com seus limites de contenção física e química, e, no pólo oposto, por uma postura libertária e revolucionária que defendia a incondicional cidadania do portador de transtorno mental e seu direito a determinar seu próprio destino. Para a maior parte dos membros de nossa equipe, profissionais vinculados a uma vertente democrática e popular, privilegiar a segunda postura, ainda que não estivéssemos totalmente de acordo com ela, e não aceitássemos integralmente suas últimas e mais radicais conseqüências, era um imperativo ético-ideológico.

Esse conflito se concretizava no desafio da prática, na medida em que o paciente se fazia presente, impondo-se enquanto pessoa — com seu sofrimento, com sua história, com seu contexto, e com sua patologia. Frente a esta realidade concreta, as idealizações teóricas, irremediavelmente, se dissolvem. Diante desse paciente, o terapeuta e a equipe terapêutica são chamados a se posicionar, não mais a partir de uma postura ideológica pré-concebida, mas como pessoas que se dispõe a um vínculo, a partir de uma competência específica, com o objetivo de percorrer um caminho em direção à superação do sofrimento que a patologia do paciente comporta para ele, para sua família e para as pessoas com as quais interage.

Portanto, do ponto de vista da operacionalização do modelo, o HD de Campo Limpo significou uma experiência de reconstrução e de invenção quotidianas. Não só cada paciente se diferenciava do outro, como também, a cada diferente momento de sua vida pessoal ou do contexto institucional, esse mesmo paciente exigia da equipe uma maior adequação de conduta, para corresponder às suas necessidades concretas: tutelar e conter ou motivar, apoiar e incentivar sua autonomia, como pólos extremos de uma infinidade de matizes possíveis. A referência dessa adequação, como não podia deixar de ser, era clínica, nela incorporada a condição sócio-econômica e cultural do paciente: é a progressão do seu quadro psicopatológico que serve de critério para a avaliação da conduta terapêutica adotada. Do mesmo modo, era essa condição sócio-econômica e cultural do paciente que, eventualmente, agravava ou minimizava o efeito iatrogênico da conduta terapêutica adotada.

Rede vincular

Observamos, como característica comum à população atendida, uma intensa fragmentação das relações sociais, tanto do ponto de vista concreto (vínculos externos), quanto do ponto de vista de sua representação imaginária (vínculos internos).

Do ponto de vista clínico, diante da desestruturação característica destes pacientes, coloca-se a todo momento a questão de causa e conseqüência: o transtorno mental pode ser entendido e interpretado como manifestação da questão social e econômica, ou, também, como causa fundamental da marginalização.

Grosso modo, existem três perspectivas de conceber a questão vincular no transtorno mental.

A abordagem por assim dizer sociológica, atribui aos fatores econômicos e sociais o papel primordial na desestruturação dos vínculos, sendo, então, a doença mental entendida como resultante desse contexto. Em decorrência disso, a ênfase clínica recai sobre os vínculos externos.

Na abordagem dessa mesma questão por algumas vertentes da psiquiatria e mesmo da psicanálise, a ênfase é dada às disfunções de adaptação do paciente. São os fatores congênitos ou os resultantes de falhas no processo evolutivo do indivíduo que o tornam incapaz de melhor se integrar nas relações sociais concretas. Por isso, a clínica se direciona, prioritariamente, ao indivíduo.

Uma terceira abordagem procura superar este tipo de antinomia. É assim que a psicanálise operativa, proposta por Pichon-Rivière e Bleger, como uma das expressões dessa vertente, enfatiza a dramaticidade das relações cotidianas e integra tanto a dimensão interna quanto externa.

É do ponto de vista dessa terceira vertente que entendemos o transtorno mental. O sujeito, atravessado pelas determinações tanto sociais quanto individuais, entra em sofrimento quando, na busca de solução para o conflito existencial de mútua adaptação entre suas necessidades e seu contexto concreto, formula um equívoco, manifesto pelo sintoma.

A condição existencial de sujeito necessitado submete todo indivíduo a uma situação de conflito em suas relações com os outros e seu meio, porque necessidade pressupõe duas determinações diferentes e opostas: satisfação ou frustração. É no contexto de suas relações vinculares, com a dramaticidade que a satisfação ou a frustração de necessidades comporta, que se constituem as identidades, o mundo interno das pessoas. Esse mundo interno, na verdade, é uma rede de vínculos internalizada; ou seja, “eu sou nós”, como diz um provérbio africano.

O conflito se transforma em transtorno mental em função do montante da ansiedade que mobiliza e da estrutura mental do sujeito, implicando numa estereotipia, numa paralisia do processo de aprendizagem e de adaptação ativa e criativa do sujeito em seu meio.

Por isso, o sintoma psicótico ou neurótico nos remete, ao mesmo tempo, à inevitável frustração intrínseca à condição humana, à ansiedade como expressão psíquica dessa frustração, e à solução equivocada desse conflito.

Quando a rede de vínculos internos não se estrutura adequadamente, a ansiedade acaba por contaminar toda a vida psíquica, comprometendo o relacionamento operativo com a realidade.

Essa rede estruturada de vínculos internos se constrói, ao longo da vida, através das relações com os outros e o mundo. Começa na relação dual com a mãe - parte visível do triângulo pai-mãe-filho - como forma mais primitiva de interação entre o eu e o mundo e onde impera uma relação simbiótica (indiscriminação) que faz os elementos externos serem incorporados e fundidos ao eu, sendo a auto-referência um dos fenômenos característicos dessa fase.

A presença significativa do pai na relação triangular interdita essa dualidade, abrindo a possibilidade para o processo de ampliação e generalização da rede vincular. A inclusão dos outros viabiliza a inserção do sujeito na cultura e na sociedade.

No psicótico a relação dual permanece predominante, exacerbando a auto-referência e tornando particularmente doloroso e conflitivo o estabelecimento de vínculos. No tratamento dessas pessoas é imprescindível oferecer a possibilidade de incluí-las numa rede vincular estruturada, procurando romper a dualidade e mobilizando suas capacidades de criar, re-significar e re-instrumentalizar vínculos.

O atendimento em equipe concretizava essa nova rede vincular, sendo o atendimento em dupla a célula básica dessa reconstrução: começava no processo de admissão, mantinha-se na maioria dos grupos terapêuticos e no acompanhamento diário de cada paciente.

O cotidiano do tratamento e a
dupla de profissionais de referência

O cotidiano do tratamento no HD se sustentava num processo psicodinâmico que instituía as bases da relação transferencial indispensável à tarefa terapêutica e fundamental para o seu prognóstico. Esse processo iniciava-se na relação da dupla de profissionais de referência com o paciente e familiares e, progressivamente, estendia-se às atividades terapêuticas e à instituição.

O início da construção de uma rede de vínculos se dá em um ambiente acolhedor, porém com limites claros, e a entrevista inicial, ou triagem, conduzida pela dupla, era o início desse processo.

Ao recepcionar o paciente e sua família a primeira sensação é de confusão: algo que foi negligenciado por muito tempo explodiu e agora procura um lugar onde possa ser contido, integrado e cuidado. A falta de nexo e o sofrimento da loucura assustam e amedrontam o paciente, sua família e a sociedade em geral, levando a um processo de retro-alimentação da rejeição, da ampliação do sofrimento e da marginalização. Na tentativa de dar um sentido para aquilo que não pode ser entendido, o paciente corre o risco de ser classificado como preguiçoso, vagabundo, simulador ou endemoniado.

No paciente crônico, a desestruturação dos vínculos é, geralmente, maior e mais visível. Na maioria das vezes, sua família já está esgotada e sem esperança de encontrar uma solução para o problema, e, não raro, quer apenas encontrar um local definitivo para depositar seu doente e assim livrar-se do tormento que ele representa.

O paciente de primeira crise está mais preservado, pois, em geral, os familiares estão ainda tentando entender o que aconteceu e com disposição para ajudá-lo.

A dupla de profissionais, como representante da equipe, era a estrutura que melhor possibilitava entrar em contato com a loucura sem sucumbir a ela, tornando-se um fator de proteção tanto para o paciente, como para a equipe. As duplas garantiam uma maior possibilidade de contato, continência e avaliação do caso clínico, ao mesmo tempo em que fortaleciam a estrutura da equipe.

Todo paciente que, em busca de atendimento, se aproxima de uma instituição de saúde mental, está em crise, e o sofrimento, comportado por ela, se irradia. Frente a isso, adscritos como estávamos ao papel profissional de auxílio, sentíamo-nos comprometidos, angustiados, compelidos a encontrar uma solução para as situações, tantas vezes paradoxais, com as quais nos confrontávamos. Foi na turbulência do envolvimento neste contexto que se evidenciou que o critério de “primeira crise” como prioridade para a admissão dos pacientes era absolutamente insuficiente para dar conta das situações com as quais nos defrontávamos.

O critério de crise, proposto pelo modelo, foi mantido, porém ampliado. Importante era a avaliar os riscos e benefícios que nossa proposta de tratamento oferecia.

O pressuposto básico era a convicção de que a situação de crise sempre comporta uma dupla dimensão: o lado destruído, fragmentado, resultante de um longo processo de adoecimento mental, e o lado da possibilidade de intervenção e de resgate, de re-significação e de reconstrução. Daí, uma postura de aceitação a priori da emergência da loucura, e, de outro, uma atitude crítica de avaliação da adequação dos recursos de atendimento ao caso específico.

Para tanto, estruturamos todo um processo de avaliação situacional através de entrevistas, em que primeiro atendíamos só o paciente, e, na seqüência, incluíamos os familiares, o que nos permitia delinear o campo das interações na família. Essa entrevista era conduzida por uma dupla de profissionais com o objetivo de acolher a situação de crise que se apresentava e avaliar o benefício possível do tratamento oferecido.

Após esse contato inicial, a dupla de profissionais intercambiava impressões e avaliações sobre o caso, na busca de um consenso quanto aos custos e benefícios envolvidos pelos diversos riscos comportados para o paciente, para a família, para a sociedade e para o próprio HD. Era consenso da equipe que não incluiríamos pacientes com alto risco de agressão e suicídio, por entendermos que estes pacientes necessitavam de atenção por 24 horas/dia. Por outro lado, pacientes com pouco comprometimento psíquico também não eram incluídos pelo risco de estigmatização e de cronificação.

Caso os dois profissionais entrassem em consenso quanto à aceitação ou não do caso, era feita, imediatamente, a entrevista devolutiva, iniciando-se o processo de contratação para o tratamento no HD, ou o encaminhamento do paciente para a unidade de assistência mais apropriada ao quadro constatado. Se o consenso não fosse obtido, eram marcadas outras entrevistas, e o caso era encaminhado para discussão com o restante da equipe, onde a decisão final quanto à aceitação ou não do paciente era tomada.

O prognóstico do tratamento de um paciente depende, essencialmente, da adequação do contrato pelo qual ele e sua família se incluem num dado projeto terapêutico.

Por isso esse contrato era individualizado, implicando no estabelecimento de referências possíveis, que viabilizassem a inclusão do paciente e de sua família nas atividades terapêuticas do HD. O parâmetro fundamental desse contrato era o da obtenção de comprometimento por parte do paciente e da família com a equipe do HD, tendo em vista o processo de tratamento. Assim, a admissão do paciente se dava através da construção do contrato entre o HD, a família e o próprio paciente.

No contrato estabelecíamos objetivamente os parâmetros das relações entre as partes envolvidas, por exemplo: horário de permanência no HD; freqüência de comparecimento; necessidade e possibilidade ou não de acompanhante no trajeto de ida e vinda ao HD; administração da medicação no HD e em casa; participação nas atividades; alimentação do paciente; participação no grupo de família; emergências ocorridas fora do horário de funcionamento do HD; fuga; responsabilidades do HD, do paciente e da família; critério de abandono; visita domiciliar; término do contrato de tratamento no HD e posterior encaminhamento.

Frente ao universo desorganizado e confuso da situação de crise e seu contundente sofrimento psíquico, o contrato tinha a função de ser um ponto claro e fixo ao qual recorríamos durante todo o tratamento, e, principalmente, de vital importância para enfrentarmos situações-limite. Ao longo do tratamento o contrato era adaptado às novas situações que surgiam.

Os itens dos contratos relativos aos aspectos objetivos do enquadramento de cada caso eram comunicados para toda a equipe e pacientes e divulgados em um mural.

Após a entrevista inicial, essa dupla de profissionais ficava como referência do paciente, não só para facilitar e favorecer a vinculação e integração dele e de sua família ao tratamento, mas também para se responsabilizar pela resolução dos problemas de sua adaptação e de adequação das práticas terapêuticas da equipe do HD ao seu caso específico.

Ao iniciar o tratamento o paciente era apresentado à equipe e aos outros pacientes, começando a convivência geralmente ao compartilhar o café da manhã.

A grade de atividades seguia normas estabelecidas para toda a rede de HDs; como os grupos de reencontro, as assembléias e os grupos de finais de semana; e outras atividades que cada HD criava de acordo com as demandas de cada momento e com a experiência acumulada pela equipe.

Com a prática, até as atividades pré-estabelecidas pela normatização foram sofrendo modificações de acordo com avaliações e disponibilidades da equipe.

Portanto, essa grade era flexível e possibilitava uma dinâmica de adaptações às condições próprias de cada unidade.

As atividades que desenvolvíamos no HD de Campo Limpo correspondiam a quatro categorias distintas:

  • grupos terapêuticos (de início de semana, psicoterapia verbal, expressão gráfica, terapia ocupacional, orientação de família)
  • grupos sócio-culturais e educativos internos (música, expressão corporal, cuidados pessoais, ateliê, oficinas de papel, costura e cozinha, horta, jornal, festas comemorativas de aniversários e datas festivas)
  • atividades culturais e de lazer externas (passeios recreativos e visitas a instituições culturais)
  • Atendimentos individuais das diversas categorias profissionais e acompanhamento medicamentoso.

Ao lado disso, havia a convivência espontânea, decorrente do cotidiano operacional, que interpenetrava esses espaços estruturados.

O que tornava a convivência especialmente importante era que possibilitava a modulação da transferência, ou seja, a relação terapêutica, antes de estar alicerçada apenas na possibilidade de regressão, estava fundamentada na capacidade dos pacientes cumprirem o contrato firmado com a instituição, isto é, naquilo que é sadio e adulto  das relações dos pacientes e equipe terapêutica.

O contrato, calcado na tarefa de tratamento, coloca a realidade no centro das relações, transpondo o compromisso individual para o plano do pacto coletivo. Isso possibilita a ampliação da capacidade terapêutica institucional, pois a função terapêutica é exercida no coletivo e de forma coletiva.

Alta

O termo alta, comumente usado na área da saúde — que via de regra implica numa relação assimétrica, onde o profissional tem o privilégio de determinar o término do contrato —, era também utilizado por nós, embora seja inadequado para denominar o que de fato ocorria. Por isso esse momento de desligamento do paciente merece reflexão.

Todo contrato prevê seu próprio término e o contrato terapêutico do HD não era exceção. Assim, desde a entrada no HD, a saída, que chamávamos de alta, estava prevista. Uma particularidade do contrato era a internação em situação de crise que, superada, implicava em alta, sem que isso significasse “cura”.

Na entrada do paciente, e em sua permanência no tratamento, a transferência com a instituição era incentivada, com o objetivo de torná-la depositária fiel das indiscriminações. A depositação das indiscriminações, fenômeno que ocorre usualmente na vida das pessoas, é indispensável para sociabilidade cotidiana. O psicótico tem maior dificuldade para depositar o indiscriminado, ficando, portanto, imerso em angústia, o que exige da equipe terapêutica um esforço para incentivar esse processo.

O desligamento do paciente só acontecia quando observávamos que os vínculos construídos durante o tratamento - vínculos tanto com seus conteúdos internos como com o outro - estavam bem mais íntegros e operantes. Paradoxalmente, era neste momento que começávamos a trabalhar para minimizar a transferência com o HD.

A hipótese que permeava a avaliação de saída era que esta capacidade de vincular-se, uma vez restabelecida, permitiria ao sujeito efetuar outras vinculações necessárias tanto para a continuidade do seu tratamento, como para a melhoria geral de sua qualidade de vida.   

A alta era um processo de saída e mais um momento terapêutico, que apostava na possibilidade de implicação do sujeito nas construções cotidianas, construções essas desenvolvidas, estimuladas e trabalhadas dentro do contexto da internação.

Na saída a expectativa era que o sujeito tivesse se apropriado de seu processo de tratamento e, portanto, pudesse se responsabilizar e participar da negociação e decisões deste momento.

Esse processo de saída que ocorria no HD implicava a equipe, o paciente e sua família. Pressupunha, de um lado, o desligamento gradual do paciente da instituição, e, de outro, sua inserção em uma unidade básica de referência e/ou em outros recursos comunitários disponíveis, onde pudesse continuar obtendo o apoio necessário ao desenvolvimento de uma vida autônoma e produtiva. Simbolicamente esse processo poderia ser representado por uma ponte, que permitiria a ligação entre o conhecido e o desconhecido e entre a capacidade e a possibilidade. Essa travessia, via de regra, conseguíamos efetuar com relativa tranqüilidade.

No entanto, o momento do término do contrato e interrupção dos vínculos cotidianos engendrava um conflito, pois a psicose demanda determinadas especificações que não víamos respondidas no HD nem em outros serviços da rede de saúde mental, que, por serem serviços de saúde, priorizavam o tratamento clínico, mas a remissão ou atenuação dos sintomas não é suficiente para provocar a reintegração da pessoa à sociedade.

Acreditamos que a principal via para a integração social é o trabalho e que o portador de transtorno mental necessita de condições especiais para trilhar esse caminho, isto é, de outras pontes que viabilizem a ocupação desse lugar social por essas pessoas.

6.         Avaliação da Experiência

“Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares”.
Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas

Avaliar a experiência é tentar lançar para o passado um impossível olhar objetivo, ainda mais quando essa experiência foi abruptamente interrompida, como foi nosso caso. As lembranças se misturam com a nostalgia, saudade de um tempo em que “éramos felizes e não sabíamos”, frase muito citada pelos membros da equipe após sua pulverização decorrente da implantação do PAS.

Hoje percebemos que esse “éramos felizes” se refere basicamente a ter pertencido a uma equipe coesa, que via no trabalho em equipe a possibilidade de dar o salto qualitativo que o tratamento de psicóticos demanda. Nossas divergências eram abertamente discutidas à procura de soluções que contemplassem minimamente as diversas posições manifestadas, já que a unanimidade nem sempre é possível.

Isso possibilitava que no relacionamento com os pacientes nos sentíssemos à vontade para agir da forma que achássemos mais conveniente no momento, pois tínhamos certeza que seríamos respeitados pela equipe, mesmo que posteriormente nos convencêssemos que outras atitudes poderiam ter sido mais adequadas. Isso se transformava em matéria de aprendizado e não de retaliação.

Nesta avaliação, é importante lembrarmos que o objetivo primordial do modelo de atenção à saúde mental que criou os HD era propiciar alternativas às internações em hospitais psiquiátricos fechados, oferecendo tratamento adequado às necessidades singulares do sofrimento psíquico do portador de transtorno mental, em internação aberta. Sendo assim, podemos dizer, via de regra, que obtivemos êxito, tanto no que se refere a pacientes crônicos, quanto a agudos. No caso dos pacientes crônicos, uma longa história de internações em hospitais psiquiátricos fechados foi interrompida, e esse caminho tornou-se desnecessário para os pacientes de primeiros surtos. Nessa perspectiva, a questão de crônico e agudo se dilui.

Apesar dos êxitos, enfrentamos muitas dificuldades, sendo duas as mais dramáticas: o encaminhamento para continuidade de tratamento dos pacientes após a alta e a inserção ou reinserção social e econômica.

No modelo de atenção à saúde mental em que estávamos inseridos, após a alta do HD o paciente deveria ser encaminhado para uma UBS, que deveria ter uma equipe mínima para atender essa demanda, isto é, psiquiatra, psicólogo, terapeuta ocupacional e assistente social. Na gestão de Luíza Erundina essas equipes mínimas até existiam, mas nem sempre estavam devidamente preparadas para receber nossos pacientes. No período, esse problema era minimizado pela existência das plenárias de saúde mental da região, que aconteciam mensalmente, onde a busca de soluções para os problemas era coletiva.

Com a mudança de gestão, as plenárias deixaram de acontecer e o isolamento das equipes dificultou ainda mais o trabalho.

Um grande número de pacientes, ao sair de alta do HD, tinha dificuldade de aderir a outros serviços, porém, como o modelo não foi totalmente consolidado, é difícil avaliarmos a causa dessa dificuldade.

Quanto ao problema da exclusão social e econômica de nossos pacientes, algo que nos inquietava muito, concluímos que seria preciso criar mecanismos que possibilitassem capacitação profissional, para que fossem re-inseridos na sociedade.

O primeiro passo nesse sentido, ainda que rudimentar, foi a criação, dentro do HD, de duas oficinas de trabalho: oficina de papel reciclado e oficina de costura. Essas oficinas eram destinadas não só aos pacientes que ainda estavam em tratamento no HD, como também àqueles que já haviam obtido alta. Uma parte do dinheiro arrecadado com a venda dos produtos era reinvestida nas oficinas e o restante era distribuído entre os participantes, de acordo com suas freqüências nas atividades.

Essa experiência, embora estimulante, mostrou-se por demais limitada. Não tínhamos capital para investir em tecnologia, o que agregaria valor aos nossos produtos, nem condições de contratar mão-de-obra especializada para nos auxiliar na criação de novos produtos. Também não podíamos operar em tempo integral, uma vez que não dispúnhamos nem de espaço físico, nem de pessoal técnico suficientes para desenvolver as atividades do HD e das oficinas simultaneamente.

A partir daí começamos a pensar na necessidade de criarmos uma instituição que pudesse complementar o trabalho desenvolvido no HD, mas independente dele. Assim constituímos um grupo com a finalidade de elaborar um projeto capaz de abarcar tanto as necessidades dos pacientes de serem inseridos economicamente na sociedade, quanto nossas dificuldades em darmos uma resposta para isso.

Com a implantação do PAS e a conseqüente pulverização da equipe, continuamos a nos reunir com o propósito de levarmos adiante o projeto, embora, a partir de então, nosso projeto deveria tornar-se completamente desvinculado do HD. É importante salientar que a experiência relatada e as reflexões sobre ela ultrapassaram as barreiras institucionais, fazendo-nos crer que este projeto, que descrevemos mais detalhadamente no próximo capítulo, é de fundamental importância para o avanço do atendimento à saúde mental em geral, não necessitando restringir-se à clientela de uma única instituição.

Nesta avaliação não podemos deixar de apontar que a grande dificuldade do serviço público não são, via de regra, os servidores e sim a falta de projetos em saúde pública, amplamente discutidos na sociedade, que sejam de longo prazo, isto é, que ultrapassem a barreira de troca de gestão. De acordo com o que relatamos, várias iniciativas foram geradas em uma gestão e abortadas na gestão seguinte. É de fundamental importância que criemos dispositivos que viabilizem, não só a criação de projetos, mas também garantam seu desenvolvimento ao longo do tempo.

A elaboração deste texto ultrapassa em muito o simples registro de uma prática. Ao escrevê-lo vivemos momentos de muito sofrimento e muito prazer, tanto quando contextualizamos nosso trabalho na história do desenvolvimento da saúde mental no Brasil e no mundo, ou quando refletimos sobre nossa prática cotidiana no HD, com o intuito de teorizá-la.

Reflexão crítica

Operacionalizar o modelo nos levou a pensar que se, por um lado, houve avanço na qualidade do serviço prestado ao portador de transtorno mental e sua família, por outro lado, esse próprio modelo evidencia que por trás da questão da saúde mental existe um problema maior que é o da exclusão social e econômica, que o modelo vislumbra, mas não consegue solucionar.

O paciente em crise, ao ser encaminhado ao HD, é alguém socialmente excluído, portador de uma rede vincular desarticulada e fragmentada. Assumir seu próprio tratamento é o primeiro passo que ele dá em busca da inclusão social. Tratar-se é um valor socialmente reconhecido, e esse é um dos primeiros ganhos que ele obtém quando aceita o tratamento. Assume, por essa via, um novo lugar social, onde os papéis de excluído, de bode expiatório, de depositário da loucura, acrescidos do papel de denunciador de uma organização sócio- econômica excludente, adquirem qualidade diferente nas suas relações cotidianas.

Embora, enquanto cidadão, ocupar-se com o próprio tratamento garanta algum nível de inclusão social, a exclusão econômica não se altera. Continua em desvantagem para competir e não consegue se incluir no processo de consumo e produção. Estas observações nos levaram a pensar na importância da inserção social via trabalho e na necessidade de um projeto que a intermediasse.

Proposta

Ao recortarmos a questão do trabalho, observamos que os portadores de transtornos mentais não estão exercendo suas capacidades de produção e consumo, não porque não tenham condições de desenvolvimento da competência produtiva, mas porque necessitam que a relação com o trabalho seja diferente, de modo a abarcar as características específicas de sua condição humana, o que significa reconhecer que o portador de transtorno mental é uma pessoa com necessidade especial, que demanda políticas sociais como as que existem para outras necessidades especiais. No processo produtivo, precisam de um sistema de apoio e mediação que fomente sua autonomia.

Nossa experiência nas oficinas de costura e papel reciclado confirmou que é viável desenvolver condições especiais de trabalho e renda, destinadas ao portador de transtorno mental, que sejam sustentáveis, muito embora o potencial produtivo dessas oficinas tenha sido limitado por estarem inseridas em um serviço público destinado exclusivamente ao tratamento e por não contar com financiamentos externos. Pudemos observar que ao produzirem peças, vendê-las e serem remunerados, os pacientes expressavam conquistas no seu cotidiano, sinais concretos de maior autonomia, de melhoria da auto-estima e de reconhecimento social, ainda que restrito ao espaço da família.

Verificamos, em pesquisas e observações posteriores, experiências de atividades produtivas e remuneração do trabalho de portadores de transtornos mentais que trazem os benefícios acima apontados. 14 Contudo, a nosso ver, essas experiências guardam duas fragilidades:

As oficinas institucionalizadas requerem vínculo permanente com a instituição, isso limita a possibilidade de crescimento da escala de atendimento.

Iniciativas de auto-empreendimentos criados por associações de portadores de transtornos mentais, familiares e amigos apresentam, de forma geral (observam-se raras exceções), tendência à confecção de produtos e serviços com pouco valor agregado e conseqüente baixa valorização no mercado.

O desafio, portanto, é promover a saúde e a autonomia do portador de transtorno mental por meio do trabalho remunerado e valorizado socialmente, sem perder de vista, dadas as proporções do problema, a necessidade de abranger um grande número de beneficiários.

A possibilidade de ter trabalho e ser remunerado por ele pode reduzir os danos à pessoa, causados pelo sofrimento mental. Isto porque o trabalho gera autonomia quando viabiliza ganho financeiro e possibilita o exercício dos seus aspectos saudáveis: capacidade intelectual e de relacionamento humano, criatividade, produtividade, entre outros.

Todavia, a autonomia da pessoa portadora de transtorno mental, mais do que outros trabalhadores, requer a criação de vínculos de interdependência e mediação contínua, entre ela e os meios de trabalho e de negociação do produto do trabalho.

Por meio da intermediação – que pressupõe proteção e autonomia – nas relações de produção e comércio será possível criar um ambiente produtivo especial aos portadores de transtorno mental, que se relacione de forma valorizada com o ambiente produtivo geral.

Incubadoras e franquias, modelos bem sucedidos no mundo dos negócios, podem ser adaptadas às condições especiais dos portadores de transtorno mental e transformarem-se em organizações mediadoras e sustentáveis de geração de trabalho, negócios e renda para portadores de transtorno mental.

As incubadoras se caracterizam exatamente pela relação de apoio e interdependência entre o agente do trabalho ou negócio e as informações e condições técnicas para realizá-lo.  Ou seja, incubar o trabalho ou negócio significa criar as condições técnicas e logísticas aos potenciais produtores para desenvolvimento de produtos, buscando, no decorrer do processo torná-lo apto a gerir de forma autônoma o seu negócio.

As franquias, por sua vez, têm como alicerce a interdependência contínua entre o franqueador e seus franqueados, no que se refere à observância de padrões de produção,  de produto e de regras de comercialização. Estes padrões são, geralmente, reconhecidos socialmente e no mercado por meio de uma grife. A grife pode também, por si mesma,  potencializar o valor do produto no mercado quando alcança uma imagem social positiva.

Os modelos de incubadora e franquia inspiram a criação de uma incubadora de atividades e  produtos franqueados para portadores de transtorno mental.

Essa organização do trabalho, especial aos portadores de transtorno mental, diferencia-se de outras experiências por dois fatores. O primeiro é o desenvolvimento de um modelo de atividade produtiva capaz de produzir artigos com maior valor agregado e  melhor remuneração ao portador de transtorno mental, fundamentado em relações de mediação e interdependência e não de tutela à sua atividade. O segundo é a possibilidade de ampliar a experiência e operar em grande escala, multiplicando tanto o número de incubadoras como de franqueados, a partir do desenvolvimento de projetos-piloto que construam modelos de intervenção.

O Instituto Diferente de Intermediação em Saúde Mental, empreendimento do terceiro setor que estamos fundando, deverá ser o instrumento para consolidar esses projetos.

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Notas

1 - voltar Publicado no site do InterPsic em dezembro de 2005.

2 - voltar Revisão ortográfica e de estilo: Mayra Pinto. Supervisão: Prof. Marco Aurélio F. Velloso

3 - voltar Castel, Robert. A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Graal. Rio de Janeiro, 1978.

4 - voltar Idem, ibidem.

5 - voltar Corbisier, Cláudia. A escuta da diferença na emergência psiquiátrica. In Psiquiatria sem Hospício, Bezerra Jr., Benilton e Amarante, Paulo (org.). Relume-Dumará. Rio de Janeiro, 1992.  pag. 10.

6 - voltar Organização Pan-americana da Saúde. Reestruturação da assistência psiquiátrica: bases conceituais e caminhos para implementação / Organização Pan-americana da Saúde. Instituto Mario Negri. – Milão: OPS, 1990. 144 pg. Memórias da Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica. Caracas, Venezuela, 11-14 nov. 1990.

7 - voltar Resende, Heitor. Política de Saúde Mental no Brasil: Uma visão Histórica. In Políticas de Saúde Mental no Brasil, Cidadania e Loucura. Vozes. Petrópolis, 2000. pág. 65

8 - voltar (1)- Antônio Carlos Cesarino- Uma Experiência de Saúde Mental na Prefeitura de São Paulo in SaúdeLoucura 1, São Paulo, Hucitec, 1989.

9 - voltar Princípios orientadores referendados na 8ª Conferência Nacional de Saúde, incluídos na Constituição Federal de 1988 na seção Saúde, sendo norteadores do SUS.

10 - voltar (2)- Jairo Goldberg - A Clinica da Psicose pg.106. Um projeto na rede pública.

11 - voltar Cesarino, Antônio Carlos - Uma Experiência de Saúde Mental na Prefeitura de São Paulo in SaúdeLoucura 1. São Paulo, Hucitec, 1989. 3-32.

12 - voltar Centro de Organização da Atenção à Saúde - Programa de Saúde Mental - Secretaria de Saúde da Prefeitura Municipal de São Paulo Política de Saúde Mental Democrática e Popular”, mimeo, 1989. 16 p.

13 - voltar Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (1992), Normatização Técnica dos Serviços de Sáude Mental. São Paulo, Mimeo Diário Oficial do Município de 29/12/92, pgs. 24-25

14 - voltar Associação Franco Basaglia/S.Paulo e Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira/Campinas/SP