Dessa
forma, sobrevive, ainda hoje, a mesma mentalidade do colono que vinha
para cá fazer a América: apesar da industrialização, permanece
ainda entranhado em nossa cultura um ranço escravista. Veja-se o salário
mínimo, a condição de miserabilidade de legiões de brasileiros, o
modo paternalista e autoritário pelo qual, no mais das vezes, tratamos
quem é subalterno
Para
manter essa opressão, investimos muito pouco no desenvolvimento social
e cultural do país.
E
por isso mesmo, apesar de contarmos com um dos maiores mercados internos
potencialmente desenvolvíveis do planeta, e com recursos naturais
abundantes, os limites com os quais nos confrontamos para o indispensável
salto de qualidade competitiva se situam hoje, muito mais, nas restrições
existentes para a efetiva democratização de nossa sociedade, o que
implica na melhoria da qualidade de vida da população, e na abertura
de canais de maior mobilidade social, através da criação de condições
de maior eqüidade na oferta de oportunidades.
Observa
Ribeiro (1993):
"Os
países do primeiro mundo, de um modo geral, já equacionaram seus problemas
educacionais, segundo trajetórias históricas e políticas na direção
de uma sociedade mais justa e equânime, de meados do século passado
até metade deste século. É interessante lembrar que, nos séculos passados,
a educação formal dos cidadãos fazia-se necessária devido às guerras:
a instrução da população era requisito essencial para ter um exército
competente.
Nos
países subdesenvolvidos, no entanto, fatores políticos e modelos
de desenvolvimento, que ainda predominam, não levaram ao equacionamento
correto de seus sistemas educacionais.
O
Brasil, por exemplo, tem garantido até agora sua participação na
economia mundial pela abundância de matérias primas e pela adoção
de um modelo de sociedade na qual uns poucos instruídos, de um lado,
e uma massa de trabalhadores semi-alfabetizados com baixos salários,
como reserva de mercado, de outro, permitia prescindir de uma educação
formal universalizada.
Esse
formato de sociedade esgota-se a cada momento. Há fortes indícios
empíricos que mostram que nenhum país, cuja população tenha uma
sólida instrução básica, esteja com uma economia em declínio a médio
prazo, como também seu corolário: nenhum país, sem educação básica
competente, tem sua economia em ascensão. A própria crise do modelo
comunista pragmático do Leste Europeu pode ser interpretada como
conseqüência do isolacionismo desse modelo em comparação com a competição
existente entre países ocidentais e certos países asiáticos. Nesse
ponto, o Brasil aproxima-se muito mais dos modelos do Leste Europeu,
do que dos países ditos ocidentais, pelo isolamento que nosso modelo
de desenvolvimento está produzindo. A diferença entre aqueles países
e o Brasil está exatamente na instrução da população."
Sob
o ponto de vista da criação de mecanismos que favoreçam maior mobilidade
social, o Brasil é impressionante pelo seu caráter de anti-modelo.
Se
tivéssemos despendido, em direção contrária, ao menos uma parcela
do esforço que fizemos para marchar em sentido inverso ao da História,
poderíamos ter avançado rapidamente e adquirido melhor posicionamento
concorrencial relativo no cenário internacional.
É
assim, por exemplo, que nos constituímos em exceção aberrante no que
se refere à redução de nossa taxa de crescimento demográfico: somos
únicos entre os países emergentes por termos reduzido a taxa de fertilidade
sem realizarmos um efetivo esforço de redistribuição de renda.
Este
fato, por si só, oculta uma inacreditável violência silenciosa, bem
à moda brasileira, equivalente a um brutal genocídio, decorrente da
cumplicidade generalizada na adoção da prática da esterilização indiscriminada
em nossa sociedade: 44,5% das mulheres em idade fértil que, em nosso
país, se valem de recursos anticoncepcionais, foram cirurgicamente
esterilizadas, quando a taxa maior, nos países desenvolvidos, não
alcança os 15%!
A
recuperação da nossa competitividade, portanto, passa, necessariamente,
pela superação do desafio da efetiva democratização da sociedade e
do avanço na criação de uma nova consciência de cidadania.
5.
Pontos fortes e pontos fracos
Apesar
deste quadro preocupante, no entanto, não se pode dizer que nos encontramos
em condições desesperadoras. São muitos os fatores que poderiam sustentar
os argumentos dos otimistas, assim como há outros que justificariam
os vaticínios mais tenebrosos. Genericamente, e sem pretender com
isso esgotar o assunto, poder-se-ia alinhar alguns dos principais
pontos fortes e fracos do quadro brasileiro, tendo em vista a perspectiva
de melhorar nossa posição concorrencial relativa no âmbito internacional.
Dentre
os fatores positivos, destaco três como principais:
Disponibilidade
de recursos naturais:
Primeiro
e mais óbvio fator, decorrente das condições continentais do país,
e que dá sustentação realística às aspirações de crescimento. No
mínimo, essa disponibilidade de recursos viabilizaria o país, ainda
que a escolha recaísse na adoção de uma estratégia covarde que o
coloque privilegiadamente como grande fornecedor de produtos agrícolas
e de matérias primas para o mercado internacional.
Parque
industrial consolidado e diversificado:
Embora,
sob muitos aspectos, o avanço tecnológico ocorrido no primeiro mundo
tenha tornado obsoletos muitos dos processos produtivos e de gestão
adotados entre nós, reduzindo drasticamente nossa competitividade
internacional principalmente por não termos desenvolvido
nenhuma política de monta visando o estímulo ao desenvolvimento
de novas tecnologias , nosso parque industrial se constitui
ainda num elemento vantajoso para a nossa posição concorrencial
relativa. O surpreendente esforço que o ambiente industrial vem
fazendo no sentido de adaptação às normas internacionais de qualidade,
por exemplo, mostra que uma saudável mentalidade industrial se implantou
no país, permanecendo com vitalidade para responder aos obstáculos
que nos ameaçam.
Porte
populacional e estabilização da taxa de crescimento:
Com
uma população que tende a se estabilizar nos meados do próximo século
em torno dos 200 milhões de habitantes, o país poderá contar com
recursos humanos em quantidade suficiente não só para sustentar
um mercado interno de porte significativo, como, também, para conseguir
massa crítica na geração de mão de obra produtiva em níveis competitivos
com os dos maiores blocos econômicos. Isso será possível, evidentemente,
se forem adotadas medidas visando uma melhor distribuição da renda
e melhoria da qualidade de vida da população, através de efetiva
universalização do acesso a recursos educacionais de qualidade e
radical mudança nas condições de atendimento às necessidades básicas
e à saúde da população.
Dentre
os pontos fracos, destaco outros três:
Instabilidade
institucional e corporativismo:
Apesar
da grande aspiração existente na sociedade, estamos ainda muito
longe do equacionamento mínimo das grandes questões institucionais
do país. Poder-se-ia dizer, até, que a maior contradição, hoje,
das instituições brasileiras, está na confrontação entre a sociedade
civil e as corporações de todo tipo, públicas e privadas, que foram
se estruturando em torno do autoritarismo, do nepotismo e do corporativismo
que vêm dominando nossa história política. O espetáculo do impasse
na revisão constitucional, por exemplo, é, em grande parte, resultado
desse processo. O país necessita não só de uma reforma do Estado,
mas, e principalmente, de uma reforma da própria sociedade, para
que dela emerja uma nova cidadania capaz de sustentar um novo arcabouço
institucional.
Instabilidade
da economia:
Com
uma inflação crônica que tem atingido taxas das mais altas no mundo,
a economia brasileira vem enfrentando um grau de instabilidade que
só causou convulsão e desestimulou os investimentos produtivos,
cuja maturação só ocorre a médio e longo prazos. Com isso, distorções
profundas se instalaram, principalmente em razão da atrofia do sistema
produtivo e da hipertrofia do sistema financeiro, criando-se um
clima caótico, que freqüentemente se transforma em palco de oportunismos
especulativos. Caso se confirmem as expectativas de estabilização
inflacionária através da redução do déficit público e do equacionamento
da dívida interna, de controle monetário, e de reforma fiscal, pode-se
esperar, num horizonte de cinco anos, a retomada de um processo
de crescimento sustentado sobre investimentos produtivos. No entanto,
este crescimento terá características muito diferentes de outros
ciclos por nós vividos, já que, no quadro atual, crescimento econômico
é sempre acompanhado de desemprego estrutural.
Dívida
social:
Um
dos maiores entraves do ponto de vista estratégico para o país se
situa no que se convencionou chamar de dívida social. Qualquer programa
de retomada do crescimento se defrontará, a curto e médio prazos,
com obstáculos monumentais neste campo. O futuro imediato nos reserva,
ao menos, três questões bastante espinhosas, cuja solução exigirá,
cada uma delas, muita paciência, esforço, decisão política e, acima
de tudo, coesão da sociedade:
a)
uma legião de jovens e adultos (os meninos de rua de hoje que
conseguirem sobreviver) provindos de condições de desamparo e
miséria na infância;
b)
uma proporção significativa de idosos na população (fato decorrente
da reversão na curva de natalidade) que não poderão contar com
a disponibilidade de recursos adequados de pecúlio e aposentadoria,
em razão de um sistema previdenciário quebrado;
c)
e a disseminação na sociedade do crime organizado, com características
de poder marginal insurgente (Velloso 1987-1988) ,
instabilizando a vida social, potencializando a violência, e desafiando
a capacidade de governabilidade do Estado, principalmente nas
grandes cidades.
6.
A conspiração insurgente pela cidadania
Apesar
de toda a crise das duas últimas décadas, no entanto, há um processo
de mudança que está impregnando toda a sociedade. Existe uma força
subterrânea, no silencioso e cotidiano desenrolar da trama da vida
social, que conspira a favor da cidadania.
Essa
dimensão de cotidianidade desse processo de mudança tende a passar
despercebida. No entanto, corresponde a uma força poderosa, a uma
resposta cheia de vitalidade que os atores sociais dão às ameaças
à sua identidade que a cada momento surgem, em razão da emergência
da anomia.
Nos
recentes eventos que mobilizaram a sociedade brasileira esse fenômeno
se evidencia com toda a sua insuspeitada força, surpreendendo até
os mais argutos analistas. Por exemplo, o impeachment
de Fernando Collor, a CPI do Orçamento, os funerais de Ayrton Senna,
os recentes eventos relacionados à conquista do tetracampeonato pela
seleção brasileira de futebol, a demissão do ministro Ricúpero.
No
episódio Collor-PC, na expectativa frustrada de punição aos anões
do orçamento, nas reações da opinião pública à liberação da bagagem
dos passageiros do vôo do tetra, assim como na fulminante substituição
do ministro, vê-se emergir uma aspiração profunda de eqüidade, e o
forte desejo de uma nova ética social.
Há
um avolumar de indignação que vai, progressivamente, transitando para
o plano da cidadania, e que, carregada de ambigüidade, ainda não encontrou,
de fato, sua plena expressão política.
Há
uma convicção que se generaliza, e que cada vez é mais efetivamente
praticada, quanto ao direito à interpelação do outro, em busca da
codificação de uma ética que discrimine, com clareza, a limpidez no
comportamento social cotidiano, e que se estende ao trato da coisa
pública.
Muitos
de nós, engolfados pelas escaramuças da luta política, terminamos
por esquecer o fato de que os dois candidatos à Presidência da República
que polarizaram as recentes eleições têm suas origens claramente vinculadas
à esquerda. Isso é, por si só, um fenômeno importantíssimo, inimaginável
há bem pouco tempo!
Outro
conteúdo que também desponta, e que se evidencia no episódio Ayrton
Senna, e, de outra forma, na relação do público com a seleção tetracampeã
de futebol, é a profunda aspiração brasileira de ascensão ao primeiro
mundo, e de aquisição de respeito no plano internacional.
Senna
apesar de sua imagem elitista, o que fez com que alguém o definisse
como líder da parte branca da sociedade , para muitos, era o
exemplo do brasileiro que deu certo, que foi para fora e que conseguiu
êxito. Do mesmo modo, grande parte dos jogadores da seleção brasileira
de futebol também vivem no exterior, representando, no imaginário
social, o papel do homem simples do povo que conseguiu êxito lá fora.
Romário é o maior depositário dessa representação.
Na
verdade, o agravamento da recessão internacional fez surgir um amplo
processo de emigração de cidadãos de países do terceiro mundo em direção
aos países do primeiro mundo, em busca de melhores condições de trabalho.
É a grande marcha para o norte, representando, ela mesma, uma das
conseqüências inevitáveis da globalização da economia e da integração
planetária.
Muitos
desses emigrantes vivem hoje, nos países em que se instalaram, em
situação clandestina, sofrendo dura discriminação, já que os países
de primeiro mundo, eles também engolfados pelo desemprego estrutural,
impõem medidas protecionistas para resguardar suas próprias legiões
de desempregados. Os emigrantes, por isso mesmo, são vistos, ao mesmo
tempo, como carga incômoda e como competidores desleais no mercado
de trabalho.
Eventos
como os da reação americana aos balseiros cubanos, a perseguição de
emigrantes turcos na Alemanha, ou, há alguns anos, dos navios de albaneses
nos portos da Itália, são exemplos desse novo tipo de discriminação
que se instala nos países de primeiro mundo, e que, muitas vezes,
resulta em atos de violência e de barbárie.
No
Brasil esse fenômeno de emigração também se manifestou. É tão significativa
a população de brasileiros vivendo hoje no exterior a maior
parte deles em total clandestinidade , que uma das únicas mudanças
na constituição promulgadas durante o processo revisional foi a que
admitiu a dupla nacionalidade aos brasileiros
disposição típica
do direito nos países que sofreram grandes processos de emigração,
e que rompeu com um conceito xenófobo tradicional em nossa legislação.
Como
observa Brzezinski (1993), uma das importantes conseqüências da globalização
econômica é a menor tolerância que as pessoas manifestam em relação
à desigualdade, em nível planetário. Há como que a criação de uma
consciência de cidadania que atravessa fronteiras, e que reivindica
condições de eqüidade para todos, em Washington, Londres, Paris, Roma,
ou na Somália e Ruanda.
No
entanto, se esta é uma regra geral, é também verdadeiro que quem mais
se impacienta com a desigualdade é aquele que, na partilha do bolo,
fica com o menor pedaço.
Este
é um fato fundamental para se interpretar o Brasil neste momento:
houve toda uma propaganda desenvolvimentista, que começou a tomar
maior vulto, logo no pós-guerra, com a campanha do "O petróleo
é nosso" do fim da década de 40.
Este
discurso tomou forma mais agressiva, e começou de fato a mudar profundamente
a sociedade brasileira, durante o governo de Juscelino Kubistchek.
No
período autoritário, e no auge do milagre econômico, transformou-se
na proposta de Brasil Potência da geopolítica do Grupo
da Sorbonne, na forma consagrada por Golbery do Couto e Silva.
E
vem sendo repetido sempre, seja por políticos conservadores ou progressistas.
A
verdade é que, em decorrência desse discurso, disseminou-se a crença
de que o Brasil pertenceria ao primeiro mundo no ano 2.000
Ora,
o ano 2.000 está chegando, e o Brasil permanece longe de pertencer
ao primeiro mundo! Há, na sociedade, uma cobrança, e um desejo de
ainda se tentar esse salto. E há, também, um ressentimento, que pede
a cabeça de culpados.
Em
suma, a sociedade brasileira, nestes anos duros desde o final da década
de 70 e durante a de 80, acumulou frustrações.
Reage
silenciosamente quando sente que o país perdeu o charme e o fair
play, passando a ser discriminado no plano internacional. Oscilou
da atitude petulante e garganta do boicote à dívida externa ao sentimento
de humilhação quando viu a imagem do país cada vez mais associada
ao tráfico de drogas, à violência urbana, aos meninos de rua abandonados
e assassinados
Reage quando vê brasileiros sendo escorraçados
dos países de primeiro mundo.
Mesmo
quem tem recursos, sente-se mal quando precisa pedir visto no passaporte
para visitar outros países, e quando vê que a qualquer um, por ser
brasileiro, são feitas exigências para provar que não é, potencialmente,
um emigrante clandestino ou um criminoso disfarçado.
Todos
esses fatos estão por detrás dessa profunda aspiração de cidadania,
que ultrapassa os próprios limites da territorialidade e da nacionalidade.
É
como se, nos recônditos do cotidiano, estivesse sendo tramada uma
nova inconfidência. Há no ar, uma atitude nova de rebeldia, que impulsiona
a sociedade para mudanças.
7.
Cidadania, tribalismo, regionalismos, autonomismos e integridade territorial
Todo
esse processo, já presente no ambiente atual, se desdobra em muitas
direções.
Seguramente,
um dos prováveis grandes desafios políticos das próximas décadas,
estará representado pelo crescimento dos movimentos regionalistas,
autonomistas e separatistas, ameaçando a integridade territorial do
país.
Embora
ainda não tenham adquirido força política suficiente para se afirmarem
como movimentos de expressão nacional, não se pode, porém, deixar
de considerá-los.
Naisbitt
(1994) examina o que denomina de novo tribalismo como generalizada
e importante tendência para o próximo século.
Afirma
ele, num de seus paradoxos, que:
à
medida que a economia global aumenta, as nações componentes protagonistas
se tornam progressivamente menores.
E
chama a atenção para os símbolos básicos desse processo, que são a
cultura, a língua e a moeda, na medida em que representam as defesas
de que os grupos sociais se valem para preservar sua identidade num
mundo que cada vez mais se integra economicamente em nível global.
Por
isso, observa que os autonomismos regionais já estão se tornando uma
das características mais significativas das relações internacionais
nos últimos anos, e prevê que este movimento terá importância fundamental
no desenho da arquitetura político-institucional das relações internacionais
no próximo século, vaticinando que o século XXI verá um mundo de mil
países.
A
se tomar por válida esta tese, dificilmente o Brasil ficará imune
às conseqüências dos regionalismos, dos autonomismos e dos movimentos
separatistas.
Novamente
aí será necessária muita criatividade política e desenvolvimento de
instrumentos institucionais eficientes para permitir uma adequada
administração deste processo, para não corrermos o risco de perdermos
as vantagens sinérgicas que nossa condição continental oferece.
Na
verdade, as aspirações regionalistas, o autonomismo e a reivindicação
de uma cidadania mais efetiva, são movimentos que se complementam,
e que têm toda a capacidade de interagirem no sentido da emergência
de um discurso político agressivo, capaz de mobilizar fortemente a
sociedade brasileira.
O
questionamento do Estado, a insurgência civil representada pela sonegação
de impostos seja como defesa diante da iniqüidade tirânica
com que taxa os pobres e isenta os ricos, seja frente ao desperdício
de recursos na administração pública , assim como a reivindicação
generalizada de maior transparência no uso do dinheiro público, podem
encontrar no discurso autonomista, muito facilmente, campo fértil
para se transformarem num movimento político de força insuspeitada,
capaz de modificar completamente o quadro geopolítico brasileiro.
Além
disso, o pano de fundo da cultura política nacionalista e xenófoba,
tanto da direita quanto da esquerda, poderá interagir neste cadinho,
contribuindo para a rápida propagação das idéias autonomistas, principalmente
em regiões onde este discurso encontre algum componente cultural e
histórico que o favoreça: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo,
Bahia, e em muitas regiões do Nordeste.
Eventualmente,
também, os messianismos, como corrente política e popular que tanta
influência teve no século passado, poderão encontrar caminhos de reaparecimento,
na cauda do crescimento dos fanatismos religiosos carismáticos já
presentes em nosso meio, potencializando ainda mais este movimento
autonomista.
Por
enquanto, essas questões podem ser consideradas como meras especulações
mas é bom ter olhos e ouvidos bem atentos para este fenômeno.
8.
Cidadania e relações de trabalho
Em
razão de meu interesse específico neste campo, alongar-me-ei um pouco
mais no tratamento deste aspecto.
De
fato, outro capítulo controvertido neste país é o das relações de
trabalho. Ainda vivemos sob a égide da Consolidação das Leis do Trabalho,
instrumento legal que teve seus inegáveis méritos na década de 30,
mas que é caudatário de uma concepção fascista e corporativista, profundamente
intervencionista, do ponto de vista do Estado, nas relações de trabalho.
Caduca
como se apresenta, a CLT consegue provocar um dos mais incríveis paradoxos
deste país: ao mesmo tempo, gregos e troianos concordam que precisa
ser mais do que mudada, que deve ser substituída ou abolida, para,
a seguir, também concluírem que é impossível modificá-la por que,
ao menos no momento atual, ninguém neste país tem a força política
necessária para enfrentar as corporações de toda ordem que, sob sua
égide, se constituíram
Sindicatos, Confederações e Centrais
Sindicais tanto patronais quanto de trabalhadores , Justiça
do Trabalho, Ministério e Delegacias Regionais do Trabalho, OAB, etc.,
etc., etc
O
próprio Ex-ministro Walter Barelli, com o peso de sua credibilidade
pessoal frente a trabalhadores e patrões, propugnou fortemente pela
adoção do Contrato Coletivo como novo referencial jurídico para as
relações de trabalho no país. Esta proposta pressupõe uma redução
radical do poder intervencionista do Estado neste campo, uma diminuição
significativa do papel da Justiça do Trabalho, e uma quebra do unitarismo
sindical, permitindo até a criação de sindicatos por empresa.
De
novo, da unanimidade favorável à mais absoluta ausência de qualquer
ação consistente no sentido da sua adoção, viu-se emergir as diversas
corporações que se sustentam na CLT, utilizando toda a sua força para
a manutenção do status quo.
Na
verdade, nosso regime de relações de trabalho termina por criar uma
situação deveras perversa: de um lado, pagamos salários dos mais baixos
do mundo, enquanto, ao mesmo tempo, temos custos previdenciários dos
mais altos do planeta, o que faz com que o custo resultante de nossa
mão de obra seja significativamente alto do ponto de vista da formação
de preços, reduzindo nosso potencial competitivo no plano internacional.
O
que é mais absurdo ainda é que, apesar dos altos custos previdenciários
e sociais, o trabalhador brasileiro continua sendo dos mais desprotegidos
do mundo, na medida em que o sistema de previdência está falido
o que, por sinal, é um fenômeno mundial e por isso mesmo não
pode lhe oferecer nem recursos de saúde adequados e nem uma aposentadoria
digna. Se algo não for feito e urgentemente , muito em
breve os meninos de rua que nos assediam nas esquinas deste país serão
substituídos por uma legião de velhos desamparados, absolutamente
dependentes da caridade pública, agonizando à míngua diante de nossos
olhos
É
bastante provável que, nos próximos anos, se caminhe no sentido de
diminuir a importância da Previdência Social do Estado, abrindo novos
espaços para as assim denominadas previdências privadas.
No
entanto, falta ainda muito para alcançarmos a estruturação de um modelo
de Previdência Privada viável, com força sinérgica para garantir as
necessidades de seus segurados. Isso porque um modelo como esse tem
que ser necessariamente mutualista, capaz de transparência na sua
gestão, sem o que o associado continuará sendo desrespeitado nos seus
mais elementares direitos.
A
verdade é que a previdência privada, entre nós, está atrelada à voracidade
de nosso sistema financeiro, ele próprio desesperado em busca de se
adaptar aos novos tempos, e, por isso, não oferece a transparência
indispensável para obter credibilidade frente a sua eventual clientela.
O
fracasso do processo de desmontagem selvagem da previdência estatal
na Argentina contribuiu, neste momento, para uma atitude cautelosa
que, de outra parte, e mais uma vez, adia o enfrentamento dessa questão.
De
outro lado, o próprio FGTS, surgido para substituir o regime da estabilidade
existente até a década de 60, mal administrado e perdulário, foi incapaz
de garantir a capacidade aquisitiva do pecúlio acumulado mensalmente.
Com isso, todo trabalhador, contribuinte do Fundo de Garantia, terminou
por sofrer uma extorsão inominável tanto mais vil quanto maior
o tempo de sua contribuição sem o levantamento de saldo. Muitos têm
até recorrido à Justiça do Trabalho, reivindicando a diferença entre
o saldo de seu fundo e o valor a que teriam direito se estivessem
sendo dispensados pelo regime de estabilidade anteriormente vigente.
Para
além desses fatos, há o impacto das novas condições decorrentes não
só da globalização da economia, mas, também, da disseminação de novas
tecnologias e, sobretudo, da nova mentalidade industrial que tende
a rever e simplificar processos tanto produtivos quando de gestão.
Comete-se
um erro grosseiro quando se pensa que o desemprego estrutural é causado,
principalmente, pela automação e robotização dos processos de produção:
a maior causa de desemprego na economia contemporânea se deve à simplificação
dos processos de trabalho, em decorrência de projetos de reengenharia.
Como
conseqüência do chamado plano Collor, foram extintos no país mais
de dois milhões de empregos. De lá para cá, conseguiu-se recuperar
muito poucos deles, pois que, embora isso não tenha ainda se tornado
tema de debate público, nós também já estamos sofrendo duramente as
conseqüências do desconcertante fenômeno do desemprego estrutural,
por menor que seja a nossa consciência a respeito desse problema.
Só
para citar um exemplo, embora a indústria automobilística tenha crescido
cerca de 30% em 1993, o setor de autopeças gerou menos de 1% de empregos
novos
Para citar uma frase que ouvi de Walter Barelli, não
há, no capitalismo atual, lugar para todas as pessoas que já nasceram
sobre a face da terra.
Ao
mesmo tempo, a economia informal vem crescendo, e, na cauda dos processos
de terceirização e downsizing têm sido também estimuladas
novas formas de relações de trabalho, desde o simples pagamento
por fora, passando pela contratação de autônomos, disseminação
das práticas de contratação por tarefa, aumento da contratação
de estagiários, contratação de mão de obra locada e temporária, e,
também, estímulo à constituição de microempresas e de empresas de
prestação de serviços.
Há,
também, uma profunda mudança na própria concepção de trabalho. Os
vendedores da Kodak, por exemplo, só vão à empresa uma vez por semana:
no restante do tempo, comunicam-se via computadores e linhas telefônicas,
diretamente de suas casas, transmitindo pedidos e recebendo programações
de visitas. E o mesmo está ocorrendo com muitas outras empresas, refletindo
um fenômeno significativo já comum nos países de primeiro mundo, onde
prédios inteiros, construídos para fins corporativos e comerciais,
encontram-se abandonados e sem uso. E isso também está acontecendo
entre nós: a antiga sede do Grupo Pão de Açúcar, em São Paulo, permanece
sendo oferecida à locação, sem encontrar interessados.
Há,
portanto, uma profunda desorganização das relações de trabalho, e
é de se prever muita turbulência em razão não só da revogação
prática que a sociedade está fazendo da CLT, mas, também da própria
alteração do lugar que o trabalho ocupa hoje na estruturação das relações
sociais.
De
outra parte, generaliza-se na sociedade o debate a respeito do salário
variável, da participação nos lucros, e até da participação de funcionários
no capital das empresas.
Em
parte porque o aumento do desemprego não diminuiu o valor do salário
dos que permaneceram empregados, principalmente no caso dos profissionais
com certo grau de especialização. Pelo contrário, em certos aspectos
até aumentou a competição entre empregadores pela contratação daqueles
que permaneceram empregados, já que estes estão tendo que absorver
qualificações novas, adquirindo maior generalidade e amplitude no
desenvolvimento de suas atividades em ambientes de empresas
enxutas.
Daí
que, apesar do quadro desfavorável ao emprego, não há, ao menos para
os cargos especializados, redução de salários, e as empresas continuam
sofrendo pressões tanto internas quanto externas para oferecerem melhores
níveis de remuneração.
A
própria discussão a respeito do salário mínimo, entre nós, só tem
importância do ponto de vista do orçamento da Previdência Social
para efeito de pagamento de pensões e das relações de trabalho
nas regiões de economia mais primitiva. Não conheço, em nenhuma das
empresas com as quais trabalho, nenhuma escala salarial cujo patamar
inicial seja o salário mínimo.
Traumatizadas,
no entanto, pelos efeitos da recessão, e descortinando um horizonte
de instabilidade, é natural que as empresas procurem meios de garantir
a possibilidade de tornar mais elástico o comportamento de sua folha
de pagamento, sem, com isso, correrem o risco de perder pessoal: de
um lado, por que o treinamento e qualificação da mão de obra é cada
vez mais oneroso, e, de outro, por que, num quadro geral de enxugamento
e paradoxalmente , há menos pessoal qualificado disponível
para eventual substituição dos demitidos.
Daí
a busca de formas de remuneração variável, através de sistemas de
participação nos resultados e, até, de participação no capital.
Na
verdade, o que ocorre de mais profundo nesse país é uma nova consciência
quanto às relações do trabalho, o que nos faz prever grandes mudanças
neste campo para as próximas décadas
A nova forma de organização
não é mais piramidal: estrutura-se como uma rede, adquirindo o caráter
de uma multipolaridade interpelativa.
De
fato, na medida em que o trabalho institucionalizado, na nova sociedade
que se avizinha, cada vez mais, exige do trabalhador preparo, capacidade
de iniciativa e de decisão, e competência diferenciada em função de
uma qualificação mais generalizada, faz também com que, de outra parte,
o empresariado reconheça não só a necessidade de melhor remuneração,
mas, e principalmente, predispõe-no a obter a adesão de sua mão-de-obra
(melhor seria dizer cabeça-de-obra) através da repartição proporcional
de lucros e o reconhecimento pecuniário de méritos.
De
outro lado, esse processo é, inexorável e progressivamente, cada vez
mais excludente, expulsando do mercado institucionalizado de trabalho,
todo dia, um número maior de pessoas.
São
dramas humanos terríveis os que se desencadeiam quando a fúria cega
das leis econômicas se abate sobre a cabeça das pessoas.
Para
onde vão elas, quando presas nesse sorvedouro?
Constituem
um enorme exército que, quando têm sorte, é absorvido pelo setor de
serviços, mas que, na sua maior parte, alimenta a economia informal,
constituída por pequenos empreendedores individuais, como os
marreteiros, por exemplo , ou que, nos casos mais extremos,
termina por aderir às hostes do crime conglomerado. O que é mais dramático
é que, muitos, literalmente, morrerão de fome e inanição.
Apesar
de, no Brasil, ainda termos espaço econômico para a absorção de uma
parte do enorme contingente de desempregados, será necessário, nos
próximos anos, introduzir inovações fundamentais na própria concepção
que a sociedade brasileira faz do trabalho assim como já está
ocorrendo no resto do mundo , prolongando o tempo de educação
e, com isso, retardando a entrada dos jovens nas relações de produção,
acelerando o afastamento dos mais velhos, reduzindo as jornadas de
trabalho, obrigando maior absorção de mão de obra no setor de serviços,
e, principalmente, encontrando meios de utilizar inteligente e saudavelmente
o tempo livre de quem não estiver trabalhando
São
desafios enormes a serem enfrentados e superados.
Referências
bibliográficas
Brzezinski,
Zbigniew K.
(1993)
Out of control: global turmoil on the even of twenty-first century.
New York, Macmillan, 240p.
Holanda,
Sérgio Buarque de
(1994)
Raízes do Brasil. 26ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio. 158p.
Ribeiro,
Sérgio Costa
(1993)
A Educação e a inserção do Brasil na modernidade. In Cadernos
de Pesquisa. São Paulo, n. 84:66-82 fev.
Velloso,
Marco Aurélio Fernandez
(1987-1988)
Referências para a análise da instituição prisional: visão operativa
da intervenção psico-sócio-institucional, In Gradiva Foro
de Debates Psicodinâmicos, Rio de Janeiro. 40:13-14, 1987, 41:7-10,
1988, 42:13-14, 1988.