Corrupção: custos psíquicos 1

 

Marco Aurélio F. Velloso 2

 

Tenho a esperança de que, com a participação deste público, constituído em sua maioria por jovens estudantes e cidadãos interessados neste assunto, teremos a oportunidade de aprender uns com os outros e de criar idéias novas que nos sirvam tanto para o nosso cotidiano individual, como para nos orientarmos diante da realidade política, econômica, social e psíquica em que estamos inseridos. [ii] 3

Quero, também, dar algumas explicações iniciais.

Estruturei minha intervenção pensando num público constituído na sua maioria por jovens estudantes e pessoas leigas em psicologia.

Sinto muita responsabilidade quando falo para um público jovem, porque sei que os jovens exigem e merecem o melhor de nós. Estão num momento muito importante de construção de idéias e do pensamento. São ávidos de conhecimento. Vocês definirão o futuro de nosso país e do próprio mundo. As principais ferramentas que vão utilizar serão suas idéias. Como dizia Lênin:

“Podemos mudar o nosso destino se nos dedicarmos à luta pela realização de nossos ideais. É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho; de examinar com atenção a vida real; de confrontar nossa observação com nosso sonho; de realizar escrupulosamente nossa fantasia. Sonhos, acredite neles. [iii] 4

Começarei falando da diferença entre moral e ética, o que exige também a diferenciação entre idealismo e materialismo, do ponto de vista filosófico.[iv]5

Em seguida, vou falar das condições concretas da existência humana, do ponto de vista da psicanálise e da psicologia social.

Na seqüência, juntando um pouco de filosofia e de psicanálise, abordarei a diferenciação das esferas do íntimo, do privado e do público, para evidenciar, logo em seguida, as éticas aplicáveis a cada uma delas. Acrescentei umas pinceladas para mostrar como essas três dimensões da ética se dialetizam no cotidiano.

No final, aplico essas idéias na abordagem da corrupção, esperando oferecer a vocês algumas aberturas novas para este problema.[v]6

Algumas preliminares

Quando se aborda temas como o da corrupção, que envolvem o questionamento de padrões de comportamento que nos remetem às referências culturais de uma sociedade e de um povo, corremos o risco de, facilmente, resvalar em julgamentos apressados, sem considerar suas intrincadas implicações. Se não tomarmos alguns cuidados, podemos formular juízos sustentados em meros preconceitos ou, ao contrário, banalizar questões importantes, amenizando aspectos fundamentais ou adotando justificativas que reduzem tudo a uma mesmice indiscriminada, sem base real, do tipo: “mas, se todo mundo faz, porque não eu?”.

Por isso, começo introduzindo alguns conceitos que nos auxiliarão a trabalhar com mais adequação a questão ética que está por trás do problema da corrupção.

A primeira observação que faço é quanto à da distinção entre moral e ética. Apesar de as duas, em sua origem etimológica, terem sentidos semelhantes — moral vem de mores, no latim, significando costumes, e ética vem de ethos, no grego, com o mesmo significado —, nos dias de hoje elas assumem significados diferentes.

Na linguagem cotidiana, confundimos facilmente estes termos, usando uma e outra palavra como se se tratassem de conceitos equivalentes, o que não é verdade.

Na Filosofia, existe uma contradição irredutível que opõe idealismo a materialismo. Trata-se de uma velha questão que opõe idéia a matéria como fundamentos da realidade que nos cerca. Ela divide a Filosofia em dois campos opostos através dos séculos. É uma contradição irredutível porque não há como fazer concessões a qualquer dos lados. Ou aderimos à corrente idealista, ou à materialista: não há meio termo.

Procurarei abordar de uma forma bastante simples esta questão fundamental, para permitir a distinção entre seus pólos opostos.

Idealismo, como a própria palavra exprime, é um conjunto de correntes filosóficas que partem do pressuposto de que toda a realidade que nos cerca vem de uma idéia, algo imaterial, que organiza e dá origem à matéria, às coisas concretas e materiais que existem, enfim, que explica todo o Universo. Em geral, esta corrente de pensamento abriga, sobretudo, as filosofias de caráter religioso, mas tem também sua expressão em autores que, não necessariamente, são religiosos: Platão (428-347 a.C.), Aristóteles (384-322 a.C.), Tomás de Aquino (1225-1274), Erasmo de Rotterdam (1466-1536), Emmanuel Kant (1724-1804), Hegel (1770-1831), e outros mais. Do ponto de vista do idealismo, a realidade surge ou de deus que a criou, ou de um conceito, um critério ou um princípio que organiza tudo o que existe.

Já o materialismo, como também a palavra exprime, é o termo utilizado para designar um conjunto de correntes filosóficas que afirmam que a matéria é a realidade fundamental que nos cerca e que é da sua complexidade e de seu movimento crescentes que nascem, finalmente, as idéias. O termo foi cunhado por Leibniz (1646-1716), em 1702. Tem uma longa tradição na filosofia: Parmênides de Eléia (cerca de 530-460 a.C.), Heráclito de Éfeso (cerca de 540-470 a.C.), Diógenes (cerca de 413-323 a.C.), Demócrito (cerca de 460-370 a.C) , Sêneca (cerca de 4 a.C - 65 d.C), Marco Aurélio (121-180), são filósofos da Antigüidade que podem ser classificados como materialistas.

Mais modernamente, o materialismo se expressa em outras correntes: no marxismo (materialismo histórico e dialético) de Marx (1818-1883), Engels (1820-1895), Rosa Luxemburgo (1870-1919), Lênin (1870-1924) e tantos outros; no existencialismo, fundamentalmente com Sartre (1905-1980) e também em outras linhas de pensamento e correntes filosóficas. É também o fundamento filosófico básico da ciência moderna, que denominamos de materialismo científico.

A expressão materialismo, no linguajar vulgar cotidiano, costuma ser contraposta a uma visão humanista. É um mau uso da palavra materialismo designar com esse nome pessoas interesseiras ou atitudes de menosprezo a valores éticos. De fato, este tipo de referência não tem nada a ver com as concepções fundamentais do materialismo.

O materialismo comporta um forte compromisso com o humanismo[vi]7, na medida em que considera que somos nós, os seres humanos, que construímos nosso mundo e as idéias que utilizamos por referência para estruturar nossas relações.

O filósofo pré-socrático Parmênides dizia: “o que é, é, e não pode não ser; e o que não é, não é, e não pode ser”. Esta frase dá uma clara idéia do ponto de partida do materialismo.

Os materialistas procuram as soluções mais simples para explicar os fenômenos: transitar do óbvio para o simples é um grande desafio na ciência.

Dito de outra forma: se quero explicar um fenômeno, devo considerar que sua explicação só pode ser dada a partir dele próprio, de sua materialidade. Por exemplo: não é cientificamente aceitável dizer que o que mantém a Terra na sua órbita elíptica em torno do Sol é a mão de deus, ou anjos por ele enviados, ou um anel de cristal invisível que deus colocou lá para não deixar que a Terra saia de seu curso. A explicação científica está nas equações que relacionam massa, velocidade e distância entre estes corpos no espaço... e massa, distância e velocidade são propriedades da matéria. Falando de outro modo, fazem parte dela.

Como diz o famoso físico contemporâneo Stephen Hawking em um livro que, provavelmente, muitos de vocês já leram (e se não leram eu recomendo) intitulado “Uma breve história do tempo”  8 , do ponto de vista da física, deus é um conceito inútil. Não há como introduzir deus numa equação.

O idealismo tem muitas facetas. Nos dias de hoje, há uma corrente idealista muito ativa — principalmente nos Estados Unidos. Ela procura introduzir argumentos irracionalistas [viii] 9 para questionar as descobertas científicas, particularmente diante da consolidação cada vez maior entre os cientistas da Teoria da Evolução proposta pelo naturalista inglês Charles Robert Darwin (1809-1882). São os defensores do assim chamado desenho inteligente, que afirmam a necessidade de uma explicação vinda “de fora” do fenômeno, sob o argumento de que a realidade é complicada demais para ser obra, simplesmente, do movimento natural de complexificação progressiva da matéria. Dizem que, já que a matéria — e acima de tudo os seres vivos — vai se tornando cada vez mais complexa, é improvável que os fenômenos mais complicados resultem do seu desdobramento natural e dos acasos evolutivos. Então, concluem: esse processo de crescente complexidade da matéria só pode ser explicado através de discretas intervenções de um arquiteto inteligente, que criou e desenha continuamente todo o Universo.

Esse tipo de explicação vai contra o princípio da Navalha de Ockham[ix]10: é complicada demais, para ter valor científico. Vai contra, também, ao que dizia Parmênides: "o que é, é, e não pode não ser; e o que não é, não é, e não pode ser". Acima de tudo, desacredita do fato, do fenômeno e da capacidade de os homens criarem conhecimento a partir da investigação da realidade material.

Uma tsunami, por exemplo, é um fato — terrível, é verdade —, mas é um fato; e é como fato concreto — movimento inusual das águas do mar em decorrência do deslocamento de placas tectônicas no fundo dos oceanos — que podemos explicá-la e tentar evitar seus efeitos. Não há como aceitar, cientificamente, que uma tsunami seja um “castigo divino” motivado pelo pecado e pela infidelidade dos homens a deus[x]11.

Posto isto, vamos para a questão da moral e da ética.

O conceito de moral é um conceito idealista. Pressupõe a existência de princípios universais, imutáveis, que devem presidir as relações entre os homens e aos quais eles devem se submeter. Seriam princípios que existiriam antes de tudo o que existe, antes da própria existência do Universo. Em geral, quem defende princípios morais parte de um viés religioso. Pressupõe, na maioria das vezes, a existência de uma verdade revelada. Ou, como no caso dos positivistas, que seguem as idéias de Auguste Comte (1798-1857), a existência de uma ordem imutável que rege os homens, a vida e o Universo.

Exemplos de princípios morais: o casamento é indissolúvel, o aborto é a eliminação de uma vida humana.

Já o conceito de ética parte da consideração das relações entre seres humanos, concretamente situados numa dada condição histórica, cultural, social, econômica e política.

Exemplos de atitudes éticas: o casamento é um compromisso entre duas pessoas e só elas podem decidir se devem ou não continuar neste vínculo; o aborto deve ser remetido à decisão da mulher, ou do casal, consideradas as suas condições concretas e a possibilidade ou não de oferecerem uma condição digna de vida para o feto em início de processo de formação. Ficou famoso o comentário de Simone Veil[xi]12, deputada de origem judia e de orientação conservadora que liderou a aprovação da lei de descriminalização do aborto na França, em 1975, ao comemorar a vitória de sua corrente política no parlamento francês: é o mal-menor. Apesar de sua posição conservadora, no limite, conseguiu ser ética.

Ou seja, na ética, estamos sempre tratando de condições concretas surgidas de dentro e a partir de relações entre seres humanos inseridos numa realidade particular. Dizia Ortega y Gasset (1883-1955)[xii]13: “eu sou eu e minhas circunstâncias”[xiii]14.

Por isso, para investigarmos uma questão ética, é necessário que tenhamos alguma noção a respeito do que são as circunstâncias da existência humana.

As circunstâncias da existência humana

O primeiro ponto a ser ressaltado nessa nossa condição de sermos, por assim dizer, seres aprisionados às nossas circunstâncias, é que somos, acima de tudo, seres necessitados. Não nos bastamos a nós mesmos. Necessitamos de um sem número de recursos para sobreviver e só podemos obtê-los nas nossas relações com o mundo e com os outros. “Nenhum homem é uma ilha” é a citação de John Donne (1572-1631)[xiv]15com a qual Ernest Hemingway (1899-1961) abre seu maravilhoso livro sobre a guerra civil espanhola intitulado “Por quem os sinos dobram”[xv]16.

Mas este pertencer a uma espécie, a um dado lugar, a um planeta e a uma história humana, implica num constante entrechoque de frustração e satisfação. Este é o nosso custo psíquico inexorável e inevitável.

Além de circunstanciados, somos seres desejantes e conflitivos. Estamos em constante interação com o mundo e com outros seres humanos, atravessados por insatisfações, necessitados sempre de alguma coisa, fora de nós, até para termos consciência de nós mesmos. Por isso Sartre dizia que “o inferno são os outros”[xvi]17. Nenhuma parte de nós escapa das circunstâncias e do conflito.

Nós, psicanalistas, costumamos dizer que o ser humano é uma unidade bio-psico-social. Com isso queremos dizer que, enquanto indivíduos, somos uma unidade biológica autônoma — temos um corpo — que é capaz de uma atividade imaginária e simbólica e que está em constante relação com outros seres humanos inseridos em condições históricas e materiais concretas.

Além disso, dizemos que todas estas instâncias estão em contínua interação, influenciando umas as outras. Por exemplo: não há como dizer que uma pessoa está doente só organicamente. A doença envolve um quadro psicológico e influencia suas relações sociais. Mais: uma doença orgânica pode ser causada por fatores de caráter tanto psíquico como social, assim como um desajuste social pode decorrer tanto de causas orgânicas quanto psicológicas.

Do mesmo modo, um sofrimento psíquico surge não só de conflitos internos ou de particularidades psíquicas do indivíduo. Pode surgir também de causas tanto sociais (crise econômica, perda de emprego, violência urbana) quanto orgânicas (uma doença grave, conseqüências físicas de um acidente ou de uma cirurgia, etc.). É o caso, por exemplo, das doenças profissionais, ou das delinqüências, que tem origens e repercussões, ao mesmo tempo, nas três áreas.

Um jovem que se torna usuário de droga, por exemplo, se inicia nesta prática a partir de um grupo de pertinência, um grupo de amigos, que consomem a droga juntos. No final, essa prática se torna um vício e pode se transformar até numa patologia orgânica grave, mas que começou como uma sociopatia e, depois, evoluiu para uma psicopatia. Quando o vício se instala, as três condições existem ao mesmo tempo: a intoxicação e seus danos orgânicos, o prejuízo na qualidade da vida psíquica e os conflitos nos relacionamentos sociais.

Vamos ampliar ainda mais essa idéia: somos seres históricos, tanto do ponto de vista biológico, como psíquico e social. Esta dimensão histórica, por qualquer caminho que investigarmos, remete sempre às relações sociais que nos circundam e dentro das quais vivemos.

Do ponto de vista biológico, fundamentalmente, carregamos nossa herança genética, que nos foi legada pelos nossos pais. Esta nossa origem biológica provém de uma relação social fecundante: o ato sexual que nos deu origem, ou mesmo a fecundação in vitro, nos tempos contemporâneos, são esta relação social primeira que nos deu a vida.

Do ponto de vista psíquico, tudo o que vem constituir nosso mundo imaginário e simbólico tem sua origem nas nossas interações sociais, inicialmente no seio da família, depois na escola e na vida como um todo. Nossa identidade é produto de um processo. Diria mais: é um processo (e um processo socialmente interativo) que é, em si mesmo, seu próprio produto.

A vida é estar vivendo, é gerundiva. Nossos pensamentos, nossas idéias, nossos sentimentos, tem sempre uma ponta na realidade concreta das circunstâncias históricas em que vivemos. “Tem uma pedra no meio do caminho”, como dizia Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)[xvii]18. Posso topar com essa pedra e machucar meu dedão do pé, posso contornar essa pedra, posso pisar nessa pedra, ou escalá-la, conforme o seu tamanho, posso admirar essa pedra e posso também, como fez Drummond, escrever uma poesia a respeito de minha experiência de encontrar uma pedra bem no meio do meu caminho, e concluir como ele concluiu:

“Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.”
[xviii]19

Do ponto de vista social, esta historicidade é ainda mais marcante. Participamos de uma cultura, que tem sua história: gestos, atitudes, modos diferentes de reagir ou de interpretar as relações com os outros. Falamos uma língua, sentimos-nos pertencentes a determinados grupos sociais: torcemos por um time, freqüentamos uma escola, pertencemos a uma família, integramos um grupo de trabalho, habitamos um bairro, uma cidade, um estado, um país, um continente, enfim, um planeta. Todos estes elementos estão profundamente marcados por uma longa herança histórica que é, ao mesmo tempo, muito dinâmica: transforma-se rapidamente. Somos produto dessas determinações e agentes de sua mudança e transformação.

Por tudo isso é que dizemos que, enquanto sujeitos, estamos bem no ponto de cruzamento de duas grandes dimensões históricas: a verticalidade e a horizontalidade.[xix]20

A verticalidade é a dimensão da nossa história individual, é o desenvolvimento no tempo da constituição de nossa identidade. A horizontalidade é a história do grupo social a que pertencemos.

É aí, bem no centro, bem neste ponto, que estamos nós, unidades bio-psico-sociais, inseridos no tempo, individual e socialmente. Não há como escapar.

Na medida em que o tempo corre, esse ponto se desloca, ao mesmo tempo, nas duas dimensões. É desse modo que construímos o percurso de nossas vidas, como se traçássemos uma espiral. Nossa vida é como uma linha sinuosa num gráfico cartesiano, com altos e baixos, quebras bruscas ou curvas harmoniosas, mas com uma particularidade: não dá, nunca, para voltar para trás.

Âmbitos do existir humano

Vivemos, portanto, como unidades bio-psico-sociais, inseridos ao mesmo tempo, e a todo o tempo, nessa dupla dimensão.A partir desse ponto, podemos definir, por assim dizer — e só para efeito didático —, amplitudes de nossa inserção no mundo: são nossos âmbitos de interação Não há como escapar.

O primeiro deles é o nosso âmbito individual, do nosso mundo imaginário e simbólico, lugar dos nossos pensamentos, de nossos sentimentos, de nossos impulsos mais profundos. Nós o chamamos também de âmbito psicossocial, já que, como expliquei, esse nosso mundo psíquico nasce da interação de nossos conteúdos constitutivos com tudo aquilo que está em torno de nós. Pensar, por exemplo, é como falar consigo mesmo, mas o código lingüístico nos foi legado através de nossas relações sociais.

O segundo desses âmbitos é o grupal ou sócio dinâmico: são os grupos nos quais vivemos, como o fato de estarmos aqui e agora neste auditório, ou quando estamos em família, ou no trabalho, num ônibus ou num vagão do metrô. Estamos sempre, de um modo ou de outro, inseridos em algum grupo social, tanto fisicamente, quanto psicologicamente. Na segunda guerra mundial o pesquisador americano Samuel Stouffer[xx]21 fez um estudo sobre o comportamento dos soldados americanos no palco dos combates e, entre outras conclusões, mostrou que havia maior risco de deserção para aqueles que não tinham um grupo de referência para o qual imaginassem voltar, depois da guerra. Apresentar-se, quando a guerra acabasse, diante de uma família ou um grupo de amigos, por mais distantes que estivessem, influenciava o comportamento do soldado em combate, conferindo-lhe um significado importante que influenciaria sua vida e seu futuro depois que viesse a dar baixa de seu serviço militar[xxi]22.

O terceiro desses âmbitos é o institucional ou micro-social. São as nossas relações no ambiente das organizações das quais fazemos parte: escola, empresa ou repartição pública, clube de futebol, partido político, igreja, etc. Nesses ambientes nossos papéis sociais começam a se transformar, a assumir uma dimensão diferente: tornam-se status, como dizem os sociólogos, nos inserem numa hierarquia, nos conferem mais ou menos poder, mais ou menos responsabilidades, mais ou menos competências técnicas e profissionais, mais ou menos acesso a remuneração diferenciada, mais ou menos exposição pública, mais ou menos reconhecimento, etc. Nosso comportamento, portanto, nessas condições, não é o mesmo daquele que adotamos no âmbito grupal.

O quarto desses âmbitos é o comunitário ou macro-social: é diferente viver numa megalópole como São Paulo, de viver numa pequena cidade agrícola. Mesmo numa grande cidade como a nossa, é muito diferente viver num bairro ou em outro. É diferente viver num continente ou em outro, em um país ou outro. Carregamos em nós conteúdos muito variados, respondemos de forma diferente segundo nossa inserção comunitária. Dispomos de recursos diferentes, segundo a latitude, longitude e altura do lugar em que habitamos. São Paulo não teria “enlouquecido” como Belém “enlouqueceu” por causa do último jogo entre nossa seleção de futebol e a da Venezuela[xxii]23. Mas teríamos torcido, entusiasticamente, só que de forma diferente. Em compensação, São Paulo enlouqueceu de forma violenta —e com um vandalismo sem precedentes— quando torcedores do São Paulo se viram frustrados, na avenida Paulista, por não ver uma partida de futebol exibida nos telões publicitários que ali estão instalados[xxiii]24. É bom lembrar que, na época deste episódio, estavam surgindo as denúncias mais evidentes de corrupção no país.

Há, por fim, um quinto âmbito, pouco referido pelos teóricos, que eu denomino de âmbito virtual ou planetário. A partir do fim do século passado, mais precisamente a partir da década de oitenta, com a progressiva disponibilização de recursos tecnológicos cada vez mais avançados — principalmente com o avanço das telecomunicações, da micro-informática, da robótica e da telemática —, o concomitante agravamento dos conflitos de distribuição de renda no cenário planetário e a agudização de fenômenos relacionados à gestão da ecologia em escala global, existe uma parte de nós, hoje, que está ligada, por assim dizer, às preocupações com o destino da própria Terra, vista agora como um punhado de matéria que se organizou de forma muito especial e que perambula pelo espaço. Estamos tomando consciência, cada dia com mais vigor, de que compartilhamos, como passageiros — e sem qualquer alternativa de opção —, de uma verdadeira espaçonave sideral, de cujo destino, queiramos ou não, somos co-responsáveis. Com o agravante de que não podemos contar com nenhum equipamento sobressalente, para o qual possamos nos transferir, se esse único que temos entrar em pane.

Vivemos, portanto, como unidades bio-psico-sociais, inseridos ao mesmo tempo, e a todo o tempo, nesses cinco âmbitos. Não há como escapar.

É aí, neste entrelaçamento dinâmico e constante dessas instâncias, que encontramos o palco do drama humano da carência, da falta, da convivência forçada com os que são diferentes de nós, da tolerância inevitável das frustrações a que estamos remetidos e da incessante busca de formas de satisfação provisória delas.

Bem. Aí está, numa descrição sucinta, o palco do existir humano.

As esferas do íntimo, do privado e do público

Vamos acrescentar, agora, mais uma dimensão à nossa discussão. Trata-se de uma outra leitura deste palco de nossa existência, muito utilizado nos debates relacionados aos conflitos éticos.

Nas últimas décadas, em função de questões como a dos direitos humanos, os limites de exposição na mídia e a propósito do próprio tema da corrupção, vem se difundindo o debate sobre as esferas do íntimo, do privado e do público[xxiv]25. É importante compreender as particularidades, entrelaçamentos e diferenciação entre essas esferas.

Comecemos pela esfera do íntimo.

A esfera do íntimo é constituída por tudo aquilo que se passa dentro de nós, e que não é passível de ser observado por nenhum observador externo. São nossos sentimentos, percepções, pensamentos, dúvidas, aspirações, desejos que ainda nem conseguimos expressar e que, talvez, nem mesmo consigamos fazê-lo um dia. Enfim, é a esfera de toda a nossa atividade mental. Essa esfera da intimidade é fundamental para a preservação da integridade de nossa individualidade. Por isso dizemos que é regida pelo princípio do sigilo, da discrição mais absoluta.

Por exemplo, quando um cidadão é chamado a depor diante de um tribunal, na condição de acusado, não é obrigado a jurar dizer a verdade, muito menos, ainda, a depor contra si mesmo. Não há culpa quando silenciamos. Não há culpa por se negar a revelar o íntimo, nem há culpa em escamotear esse íntimo por trás de uma fala evasiva ou de um disfarce.

Em última instância, diante da ameaça extrema de invasão da intimidade, temos, inclusive, o direito de mentir. Porque mentir, no caso, é a última defesa frente à ameaça de ruptura da integridade íntima.

É o caso da assim chamada restrição mental, que os franceses chamam de arrière-pensée [xxv] 26 , recurso redescoberto pelos jesuítas para se defenderem diante dos interrogatórios dos carrascos da Inquisição: diante de uma pergunta que poderia implicar numa resposta incriminadora, respondiam utilizando-se de uma ressalva mental que alterava a interpretação do que diziam[xxvi]27. Mais ou menos assim:

Inquisidor:

— Você viu fulano de tal?

Inquirido, olhando para um determinado ponto e omitindo o pensamento entre parênteses:

— (Aqui) não.[xxvii]28

É também por essas características especialíssimas do direito que todos nós temos à nossa própria intimidade que toda tentativa de quebra forçada da integridade pessoal se reveste de um caráter de violência, mesmo na ausência da agressão física. É o caso, por exemplo, da tortura, seja ela física ou psicológica.

Às vezes, também, alguns sinais escapam e denotam os conteúdos da intimidade. Um lapso, um sorriso, um franzir de sobrancelhas podem ser suficientes para comunicar ao outro o que se passa dentro de nós: para bom entendedor, poucas palavras bastam.

É por isso também que, quando buscamos ajuda para lidar com os nossos conflitos íntimos e a dor que eles nos trazem, temos o direito de reivindicar da parte do profissional que nos atende, o sigilo profissional. Por isso uma relação psicoterapêutica é um espaço tão especial: é um particular grupo de duas pessoas que tem por tarefa lidar com os conteúdos da intimidade de uma delas.[xxviii]29

Já a esfera do privado é constituída por todo um conjunto de ações e interações nossas que podem ser perfeitamente registradas por um observador externo, mas que têm uma etiqueta do tipo “proibido observar” ou “cuidado ao observar”. É a esfera regida pelo princípio da restrição. São aqueles fatos e acontecimentos que compartilhamos com as pessoas que nos são próximas e que se desenrolam sob um pacto do tipo: “fica entre nós”.

A preservação da privacidade é também de uma importância vital. Tanto é assim que, por exemplo, as questões de família, ao serem tratadas nos tribunais, recebem o privilégio da proteção do chamado “segredo de justiça”.

Enfim, a esfera do privado é também cheia de implicações e de mistérios, e é importante que seja assim.

Por sua vez, a esfera do público abarca todos os atos e fatos de nossa existência realizados e praticados sem qualquer restrição ao observador. Mais ainda: são ações e interações que praticamos sob o pressuposto explícito de que serão observadas pelos outros. O princípio que rege esta esfera é o da transparência.

No campo do público, portanto, nada pode ser escondido, não há restrições a serem impostas à observação e ao questionamento, sob pena de quebra da credibilidade, da legitimidade.

Como vocês já devem ter percebido, estas esferas não são estanques entre si. Pelo contrário, elas convivem e se interpenetram a todo instante.

Há pouco, utilizei o exemplo da relação paciente-terapeuta. Na verdade, essa é uma relação que pertence à esfera do privado, ficando muito próxima da esfera do íntimo. A prescrição do “fica entre nós”, neste caso, tem por finalidade garantir uma condição de privacidade entre os dois, paciente e terapeuta, não só para permitir que o paciente possa falar de sua intimidade mas, e principalmente, para que sua intimidade seja preservada.

A esfera do público, de certo modo, engloba as outras duas: num domingo num parque, podemos ver famílias, casais de namorados ou grupos de amigos interagindo entre si num espaço aberto e à vista de todos. Mas isso não significa que o sigilo sobre a intimidade e a restrição sobre a privacidade desapareçam completamente nestas circunstâncias.

Ao mesmo tempo, esse entrelaçamento entre as esferas do íntimo, do privado e do público dá margem a muitas confusões e ambigüidades. Muito do trágico ou do humorístico resulta da súbita passagem de um plano para o outro: é o caso, por exemplo, dos programas televisivos do tipo Câmera Indiscreta, das revelações feitas por ex-amantes, ex-esposos ou ex-empregados sobre a intimidade de pessoas públicas... e há a curiosidade que, apesar de tudo o que tem à disposição para se saciar na esfera do público, está sempre atiçada, procurando invadir a dimensão do privado e do íntimo. É o buraco da fechadura, cheio de mistérios e atrativos.

Na sociedade atual, com o incrível desenvolvimento dos recursos midiáticos que é uma de suas características mais marcantes, este entrelaçamento, inúmeras vezes, cria situações de muita ambigüidade, onde não fica claro até onde ocorre a invasão da privacidade e do íntimo ou, pelo contrário, se existe, ao menos implicitamente, o desejo dessa exposição por parte de quem se viu exposto.

Há um jogo de voyeurismo e exibicionismo difícil de deslindar, que a sociedade contemporânea explora de forma extrema. Recordo-me do relato que me fez uma pessoa famosa, dizendo-me de como se sentia incomodada quando entrava em um lugar e todos a observavam, como se a conhecessem. Ao me falar disso, ao mesmo tempo em que se queixava, tinha uma expressão de orgulho e satisfação. Observando essa reação ambígua perguntei-me, na ocasião, se não se sentiria frustrado caso não obtivesse dos outros a atenção de que se queixava e não provocasse nos observadores essa curiosidade a respeito de sua pessoa.

Além disso, na sociedade contemporânea, os recursos de observação, registro e disseminação de imagens e de sons estão sendo levados a limites há pouco tempo insuspeitados. Nossa imagem é registrada nas casas comerciais, nos bancos, nas ruas, nos prédios públicos. Nossas ligações telefônicas podem ser facilmente rastreadas e seu conteúdo pode ser violado. Se quisermos, podemos transmitir, vinte e quatro horas por dia e durante trezentos e sessenta e cinco dias por ano, imagens e sons de nosso espaço de trabalho ou de nosso ambiente mais íntimo: basta uma câmera, um microfone e um link da Internet.

Há um jogo de voyeurismo e exibicionismo difícil de deslindar, que a sociedade contemporânea explora de forma extrema. Até que ponto queremos nos preservar e até que ponto, como participantes dela, queremos nos expor, nos oferecermos para sermos vistos e ouvidos por quem quer que seja?

Vêem, portanto, que este entrelaçamento entre o íntimo, o privado e o público é muito complexo e repleto de conflitos, reais ou potenciais.

A tarefa de administrar esses conflitos é o campo da competência da ética, ou melhor, das éticas, no plural, porque não existe uma única ética que possa ser aplicada ao mesmo tempo a essas três esferas.

A ética individual, a ética de princípios e a ética de resultados

Na tradição do pensamento ocidental, a discussão sobre a ética começou com Aristóteles (384-322 a.C.). Para ele, ética é a filosofia da ação, e implica na investigação de como o ser humano busca o “bem” ou o “bom”. No seu pensamento, o desdobramento da ética desemboca na política.

A ética, na verdade, é a reflexão sobre o conflito na vida dos seres humanos e comporta a consideração a respeito de como ele pode ser resolvido, tanto do ponto de vista do indivíduo, quanto do ponto de vista das relações entre as pessoas, como no campo da ordenação das relações mais amplas, da ordem do coletivo. Ética, portanto, é prática: visa orientar a ação.

Desse modo, diria a vocês, a ética se dirige, em última instância, ao apaziguamento da dor preponderantemente de caráter psíquico, individual e coletiva, gerada pelos conflitos de interesse, pela inevitável confrontação a que estamos constantemente submetidos entre a busca de satisfação de nossos desejos e a inevitável limitação que a realidade impõe a essa satisfação, gerando frustração.

Ora, os caminhos para esse apaziguamento vão assumir conotações diferentes segundo a esfera em que nos situarmos: a do íntimo, a do privado e a do público.

Por isso não há uma única ética que regule essas três esferas, embora o objetivo comum, nas três, seja o da resolução do conflito, ou, em outros termos, a redução ao mínimo tolerável da frustração e, por conseguinte, da dor a ela associada.

Todas as éticas, portanto, têm por objetivo comum fazer com que o mal necessário da dor associada à inevitabilidade das frustrações não se transforme num mal mais do que necessário, que inflija aos indivíduos mais sofrimento do que aquele inseparável de sua condição de existência.

A ética que preside a esfera do íntimo é a ética individual, também chamada de ética do sujeito, ética da consciência, ou ética da intimidade. Dado o fato de sermos conflitivos, de estarmos constantemente mobilizados por necessidades, que se expressam para nós sob a forma de desejos os mais contraditórios, vivemos, a todo momento, a experiência da ansiedade, da angústia, da dor psíquica. É o preço que pagamos por estarmos vivos, é o custo psíquico inevitável de sermos humanos.

A ética individual busca esclarecer o caminho pelo qual é possível encontrarmos uma conciliação conosco mesmos, uma redução, pelo menos, dessa dor psíquica, uma pacificação interna, ou, como se costuma dizer na linguagem comum, uma “paz de consciência”.

O grande avanço que fizemos, historicamente, na compreensão dessa dimensão ética da intimidade, nós a devemos a Freud (1856-1939) e à psicanálise. Antes disso, as questões éticas da intimidade estavam submetidas às religiões e aos sacerdotes, que dispunham de um único recurso para lidar com esses conflitos: a proibição, ou seja, a imposição da submissão a uma vontade externa, assessorada pela absolvição e pela penitência, na tradição cristã.

Foi Freud[xxix]30 quem nos ofereceu um caminho de liberdade neste campo.

Em primeiro lugar, nos fez entender que nosso mundo psíquico é muito complexo, é regido, na sua base mais profunda, pela emergência de pulsões inconscientes que estão em constante busca de descarga. A emergência da tensão que a pulsão comporta, gera desconforto psíquico. A solução mais simples para esse desconforto é a descarga motora, que nos dá alívio e gera prazer.

Ocorre que não é possível dar vazão a todos esses desejos. A realidade física, material, impõe, em primeiro lugar, certos limites insuperáveis.

Se eu tentar subir em um lugar alto para realizar o meu desejo de voar, jogando-me no espaço, certamente, ficarei muito frustrado; terminarei esborrachando no chão, padecendo da dor associada a este tombo.

Encontro, então, concretamente, uma barreira para descarregar esta tensão.

O nosso aparelho psíquico, porém, pode nos acudir neste momento de outras maneiras. Uma primeira, é a de renunciar, ou ficar chupando os dedos. Mas ele pode nos oferecer, também. a solução de, nestas circunstâncias, desviar, encontrar outro caminho, para encaminhar esta tensão. Podemos, então, agüentar a frustração ao mesmo tempo em que canalizamos nossas energias para imaginar, fantasiar, simbolizar. Podemos pensar (e, por isso, pensar dói). Seguindo este percurso, podemos imaginar a experiência de voar, observando os pássaros; ou escrever uma poesia sobre esse assunto; ou até inventar um avião, um pára-quedas ou uma asa delta. Utilizando esses recursos, terminamos por encontrar um modo diferente de realizar nosso desejo de voar, reduzindo o desconforto e pacificando a dor que a não realização dele nos causava.

Mas também a realidade concreta das relações sociais irá limitar, e muito mais ainda do que os limites da realidade física, a possibilidade de realização de nossos desejos.

Nós descobrimos esses limites muito cedo em nossas vidas, e eles aparecem sob a forma das interdições que nos foram impostas pelos adultos. A vida de uma criança que começa a interagir com o mundo ao seu redor é muito dura: a todo momento se confronta com um sem número de nãos. Não pode isso, não pode aquilo, isso não se faz, e assim por diante.

Nós introjetamos essas interdições, na maior parte das vezes, de um modo, por assim dizer, automático, sem reflexão e sem justificativas mais elaboradas. Essas interdições passam a fazer parte de nossa vida psíquica quase do mesmo modo como as limitações que experimentamos na relação com o mundo físico. Apresentam-se para nós sob a fórmula do “é assim que as coisas tem que ser feitas” ou “é assim que o mundo funciona”... e nos remetem a um sentimento de que, se não agirmos do modo como nos dizem que devemos agir, deixaremos de ser amados e protegidos.

O mais interessante, nessas situações que vivemos em nossa infância, é que não nos explicaram, na maioria da vezes, o porquê dessas interdições. Isso nos impede de simbolizar, de raciocinar, de assumir uma atitude mais ativa diante delas. Somos remetidos a uma condição de passividade — de objetos — e não nos sobra outra atitude senão a de nos submetermos.

Essas interdições, de um modo independente de nossa vontade consciente, são remetidas para uma área mais profunda de nossas mentes, onde permanecem sempre alertas, na expectativa de barrar os desejos, tão logo eles apareçam.

Isso ocorre como num automatismo. Não tomamos consciência destas interdições. No máximo, sentimos culpa, vergonha, raiva. Ficamos impedidos de pensar sobre elas, embora sempre exista certo grau de dor psíquica associada a estes episódios.

No máximo pode nos ocorrer que, num sonho, num lapso, numa anedota ou num gesto inconsciente, esse desejo reprimido venha à tona e, de um modo meio torto, se realize: ao contrário do caçador, atiramos no que não vemos para acertar o que vemos. Por exemplo: sonho com a morte do meu cão de estimação depois de ter me sentido magoado por um amigo.

A solução que Freud[xxx]31encontrou para esse impasse é a de investigarmos, dentro de nós mesmos, as razões mais profundas desses desconfortos, através de um processo que ele denominou de associação livre. Por este caminho, seguimos a trilha tortuosa que essas interdições estabeleceram em nosso funcionamento psíquico, com o objetivo de identificar, e trazer para o nosso mundo consciente, os elementos que, na origem, estruturaram nossas respostas desse ou daquele modo e que nós continuamos repetindo indefinidamente durante a vida. Por isso, uma boa forma de sintetizar o processo analítico é a seguinte: lembrar e elaborar para não repetir.

É através desse processo que podemos reconhecer nossos desejos, confrontá-los com a realidade que nos cerca, para podermos optar se buscamos sua satisfação de forma direta, ou se encontramos uma forma indireta de realizá-los — que chamamos de sublimação —, ou se, em última instância, reconhecemos que não podem ser realizados e que temos que a eles renunciar.

Então, a ética individual, com base nestes pressupostos da psicanálise, é aquela que procura o “bem” da redução dessa carga da dor psíquica através do esclarecimento das origens de nossos conflitos íntimos. É a ética da verdade íntima. É a ética de nos tornarmos sujeitos de nossos desejos, senhores das escolhas que irão definir nosso destino, superando a condição de sermos objetos cegos das determinações inconscientes de nosso passado. É a ética da explicitação do implícito, do não falado, para que possamos ser, verdadeiramente, sujeitos de nós mesmos.

Já a ética que preside a esfera do privado é a chamada ética de princípios, ou ética da responsabilidade. A origem etimológica da palavra responsabilidade é a mesma da palavra resposta. Isso quer dizer que a ética da esfera do privado é a ética que deve presidir as mútuas respostas entre sujeitos que interagem entre si.

É de dentro dessa perspectiva da mútua resposta entre sujeitos que podemos deduzir o princípio fundamental que rege a ética das relações privadas: não fazer ao outro o que não queremos que nos façam.

É esta a ética que permite a diferenciação dos bandos e das hordas, de um lado, dos grupos sociais organizados, de outro.

Freud[xxxi]32, quando fala da passagem que os homens fizeram do estado de natureza para o estado de cultura, recorre ao mito do assassinato do pai primevo — o pai primitivo — para explicar a criação da primeira Lei, a da proibição do incesto, que é a única Lei que está presente em todas as culturas e que ele pressupõe ter sido a primeira Lei criada pelo homem. Com isso, ele nos mostra a necessidade da instauração da Lei para possibilitar a vida social entre os homens.

O mito do assassinato do pai-primevo é uma hipótese freudiana que, em resumo, pode ser assim exposta:

As comunidades dos homens mais primitivos, aqueles que se situavam logo um passo acima dos hominídeos que nos deram origem, estariam ainda organizadas segundo as mesmas estruturas dos bandos de símios. Haveria um macho dominante — que tomarei a liberdade de chamar de um “macacão” —, que se apossaria de todas as fêmeas do grupo e manteria os demais machos relegados à periferia do bando. A substituição desse macho dominante ocorreria em uma luta, onde um desses machos repelidos, sentindo-se forte o suficiente, desafiaria o macho dominante para disputar seu lugar de liderança. Esta luta resultaria na morte de um dos contendores, ou em sua expulsão do bando.

Segundo Freud, teria ocorrido, em um momento muito precoce da evolução de nossa espécie, uma mudança substancial neste mecanismo de sucessão na chefia do grupo. Os machos relegados à periferia do grupo — que com a mesma liberdade chamarei de os “macaquinhos” —, todos filhos do “macacão”, teriam se unido em uma luta parricida contra o macho dominante, pai de todos eles, assassinando-o. Feito isto, os “macaquinhos” se viram diante de um dilema: com o assassinato do pai-primevo destruíram irremediavelmente a forma original de sua organização social. Tiveram, então, que instituir em seu lugar uma Lei, a da proibição do incesto, já que, sem esse limite imposto a todos os membros do grupo, a luta iniciada contra aquele primeiro pai teria se transformado numa luta fratricida que poderia até resultar, no limite extremo, na extinção do grupo e da própria espécie.

A Lei, portanto, inaugura a cultura.

É este princípio, o da Lei, que rege a organização dos grupos sociais. A Lei, antes de tudo, pressupõe a renúncia, da parte de todos, à satisfação sem limites de seus desejos individuais, de forma a propiciar que, na vida social, todos tenham acesso a um grau de satisfação que resulte tolerável e permita a convivência.

A instituição da Lei institui, ao mesmo tempo, a transgressão. Proibir implica sempre a possibilidade de burlar a proibição. Daí é que surge, em todo grupamento social organizado, um sistema de premiação e punição, através do qual se procura incentivar o cumprimento da Lei e desencorajar sua transgressão.

A vigência de um sistema social presidido por uma Lei exige, por assim dizer, um contrato entre os membros do grupo social, e uma credibilidade quanto à sua aplicação a todos, sem distinção.

Neste sentido, é muito interessante pensar na Lei do Mar, que confere ao capitão de um navio a responsabilidade pela organização do salvamento dos passageiros e tripulantes em caso de naufrágio. O capitão tem a responsabilidade de organizar o salvamento, dando prioridade às mulheres, às crianças e aos homens aptos. Só depois é que dará vez aos doentes, aos feridos e às pessoas idosas. Por último, e só depois de todos, é que o capitão tem o direito de se salvar a si próprio. É por isso que, no decorrer do salvamento, tem direito de matar quem se insubordinar, tentando antecipar sua vez e pondo em perigo a ordem e organização do salvamento. Mas, para isso, tem que expor sua própria vida, tem que estar disposto a pagar com a própria vida a prioridade que estabeleceu.

Se o capitão, num momento desses, fraquejar, põe em risco a vida de todos, remete o grupo ao pânico e à anarquia.

Esse é um aspecto importante da Lei, do ponto de vista da relação entre os líderes, as autoridades, e a sociedade como um todo. O que se espera dos líderes é que sejam os primeiros a se submeter às leis: se não se comportam assim, perdem legitimidade, começam a ser desacreditados pelos demais membros da sociedade e estimulam que outros tentem burlar a Lei.

Outro aspecto a ser considerado é que um sistema de leis que mereça o nome de legítimo pressupõe reconhecimento, ao mesmo tempo, de semelhanças e diferenças. Por isso, do ponto de vista da Lei, não é de se esperar uma “igualdade para todos”. A Lei, na verdade, promove equidade, e não igualdade.

É por isso que, por exemplo, em todas as culturas, os adolescentes são tratados, quando transgridem a Lei, com mais brandura do que os adultos. Reconhece-se que eles estão em uma etapa de seu desenvolvimento em que necessitam de se confrontar com a Lei, para aprender concretamente a respeito de seus limites.

Outro aspecto muito interessante dessa questão da desigualdade está no papel dos líderes, com as prerrogativas que a eles são conferidas.

Aqueles que detêm o poder, em todas as culturas, são cercados de certas prerrogativas que lhes conferem certo grau de distância com relação aos demais integrantes do grupo social. Essa distância, do ponto de vista do psicodinamismo social, é até necessária.

De fato, como depositamos no espaço social a expectativa de satisfação de nossas necessidades, os líderes, muito facilmente, se transformam em alvos fáceis da depositação maciça da expectativa de realização de desejos os mais contraditórios da parte dos demais integrantes do grupo social.

Por isso mesmo, reconhecemos a necessidade de que mantenham certa distância social dos demais membros de seu próprio grupo, para que não se confundam diante dessa descarga coletiva e não se contaminem por ela. Afinal, desejamos que os líderes possam ser lúcidos e justos, que sejam capazes de ponderar com clareza sobre os melhores caminhos a serem seguidos e quanto às prioridades a serem obedecidas.

O perigo, neste processo, é que, muito facilmente, distância se transforma em isolamento.

O lugar do poder, ao se transformar num lugar de isolamento é, potencialmente, um lugar de alto potencial psicopatogênico, já que quem detém poder tem acesso a recursos muito diferenciados daqueles a que podem aceder o comum dos mortais. Mas como os poderosos são também mortais, são seres desejantes atravessados por frustrações, ao habitarem este lugar tão especial — repleto de riquezas e de recursos para mobiliza-las — podem ser facilmente acometidos de delírio.

Líderes delirantes são muito perigosos: transformam as riquezas coletivas em propriedade privada, oprimem seus súditos, tornam-se insensíveis às necessidades da sociedade como um todo. Tornam-se, quase que sem sabê-lo, tiranos.

Os tiranos sempre se fazem cercar de alguns acólitos que os auxiliam a manter sua dominação. Caracteriza-se, então, uma forma grave de perversão da Lei, que é seu uso para a submissão de uns em favor de outros. É a chamada Lei Tirânica que, em si mesma, é a própria antítese da Lei. Desde a antiguidade é reconhecido ao povo a ela submetido o direito de revolta, que é a justificativa última para as revoluções populares.

À tirania dos líderes, no entanto, a resposta da sociedade costuma ser ambivalente. Num primeiro momento, pode haver uma identificação projetiva, através da qual as pessoas vêm seus desejos se realizarem através da “grandeza” de seus governantes. Num momento seguinte, frente à constatação da insensibilidade dos que as governam, as pessoas podem se tornar apáticas. Quando, no entanto, a miséria se espalha e a indignação se alastra, a insurgência pode emergir, na tentativa de deposição do tirano.

Na prática, esta questão da equidade é muito complicada, mas essencial para se lidar com os conflitos éticos do cotidiano.

O essencial é compreender que, sob o contrato da Lei, há um “toma lá, dá cá”. Nós oferecemos à sociedade uma renúncia em troca do reconhecimento de nosso direito de buscarmos satisfação naquilo que não nos é interditado.[xxxii]33

Toda transgressão, portanto, é uma quebra desse contrato.

Frente à transgressão, o que a Lei impõe, como pena, é, ao mesmo tempo, uma sobre-renúncia — um aumento da renúncia — à satisfação e uma reparação a quem foi prejudicado por quem excedeu seus limites. Na ausência do prejudicado (como no caso de um assassinato) ou na impossibilidade de identificação individual dos prejudicados, a reparação é feita à própria sociedade.

A boa Lei diferencia, mas promove equidade. Nada mais destrutivo, do ponto de vista da ética da responsabilidade, do que introduzir diferenças ilegítimas, na base do “somos todos iguais, mas há alguns que são mais iguais do que os outros”.

Já que estamos tratando do tema da corrupção, diria que todo ato corrupto pressupõe, de certa forma, a introdução desse modo distorcido de aplicação da Lei. Implica, no mínimo, em conferir privilégios indevidos a alguns (como no nepotismo), quando não é, de fato, um modo de barganhar vantagens mútuas em detrimento dos demais (como na corrupção propriamente dita).

Finalmente, consideremos a esfera do público.

Esta esfera está submetida à ética de resultados, também chamada por alguns de ética de grupo, ou ética do coletivo. O princípio que a rege foi assim expresso por Norberto Bobbio (1909-2004): os fins justificam os meios, desde que o uso desses meios não contamine os fins perseguidos[xxxiii]34.

Tem por objetivo a regulação das ações de promoção do assim chamado “bem comum”, ou “bem social” ou também “bem de todos”. Como trata dos conflitos que se manifestam no entrechoque de expectativas, necessidades e possibilidades limitadas existentes nos espaços sociais mais amplos, em muitos casos, a ética de resultados termina por ser a ética do “mal menor”. De outro lado, também, podemos dizer que é a ética da eficácia.

A ética de resultados deve presidir nossas relações de civilidade, de exercício do nosso direito de cidadania, assim como deve ser a referência que justifica e legitima a ação dos governantes, dos juízes, dos administradores públicos.

Na ética de resultados, as questões são sempre colocadas do ponto de vista coletivo —nunca individual— e visam a promoção de condições melhores para a vida da maioria das pessoas.

Pressupõe, em última instância, a existência de um Estado, com sua ordenação jurídica e seu aparelhamento de gestão da sociedade.

É bom entender, desde já, que, no direito moderno, o Estado é compreendido como aquele que detém o monopólio da violência. Isso quer dizer que, numa sociedade moderna, devidamente organizada, a nenhum cidadão é permitido o exercício individual da violência —salvo em legítima e urgente necessidade de defesa de sua própria integridade ou de sua vida— e que só ao Estado é conferido o direito de exercê-la, partindo-se do pressuposto de que esse exercício estará voltado para a proteção de todos.

Por exemplo: o direito de ir e vir, é um direito inalienável de todo ser humano, individualmente considerado. No entanto, no caso da eclosão de uma epidemia contagiosa, o Estado pode impor quarentena e limitar o direito individual de ir e vir, confinando as pessoas a um determinado lugar, até que a epidemia possa ser controlada.

Da mesma forma, se vamos discutir a oportunidade ou não, do ponto de vista da ética de resultados, da introdução da pena de morte, o argumento que utilizaremos não é o de que uma pessoa que matou outra não merece continuar vivendo, ou o de que não devemos matar uma pessoa porque não queremos ser mortos nós mesmos. A questão que se coloca, do ponto de vista da ética de resultados, é a de se a introdução desta pena aumenta ou diminui o “bem comum”. Os argumentos válidos, deste ponto de vista, são os que têm a ver com o resultado da adoção desta pena: vai reduzir os assassinatos? Reduz a violência? Ou tornará os criminosos ainda mais violentos? Enfim, é bom para todos, ou piora para todos?

É por isso que, como já dissemos, do ponto de vista da ética de resultados, os fins justificam os meios, desde que os meios não contaminem esses fins.

A ética de resultados abre espaço para reflexões importantes do ponto de vista do mundo econômico e político.

Uma tendência que tende a se tornar mais hegemônica no mundo contemporâneo, por exemplo, é a que propõe uma redução da intervenção do Estado na vida cotidiana.

O pressuposto que está por trás deste tipo de propostas é o da ética de resultados.

De um lado, uma proposta deste tipo afirma que a gestão do Estado, para garantir transparência e equidade, é por demais morosa e complexa, razão pela qual sua ingerência em diversas áreas complica desnecessariamente as coisas, termina por desservir às pessoas e cria a oportunidade para que haja mais corrupção. Seria melhor, então, licitar serviços públicos, por exemplo, entregando sua operação a agentes privados, reservando-se ao Estado simplesmente a função de fiscalizar e administrar seus preços.

De outro lado, os que são contra uma proposição deste tipo dirão que não necessariamente a entrega da operação de serviços públicos à iniciativa privada resulta em melhoria dos serviços prestados à população, e que a corrupção não irá diminuir somente porque o Estado deixou de operar tais serviços. Pode haver corrupção, também, na licitação ou na fiscalização dos contratos de privatização de serviços públicos.

A opção por uma ou outra solução passa pelos resultados. Tanto do ponto de vista do cidadão como do governante, os argumentos mais fortes estarão com aqueles que puderem evidenciar melhores resultados.

Um exemplo bem brasileiro e que teve repercussão internacional da prática da ética de resultados foi o da atribuição ao Estado da responsabilidade de distribuição gratuita dos coquetéis de medicamentos aos portadores de HIV positivo. Esta questão, no primeiro momento, levou o governo brasileiro a se opor às determinações da OMS — Organização Mundial da Saúde. Os resultados positivos, no entanto, desta política pública por nós adotada, acabaram por ser internacionalmente reconhecidos, justificando, inclusive, a quebra das patentes de alguns desses medicamentos para tornar possível o acesso da população ao tratamento adequado anti-HIV.

Um dos maiores danos que se pode causar a uma sociedade, do ponto de vista da ética de resultados, é o recurso à demagogia. Os demagogos não se preocupam com os melhores resultados para todos. Muitas vezes, até disfarçam seus interesses pessoais sob o argumento de que estão em busca do bem comum. Aliás, nada mais comum na boca de um demagogo do que o recurso à palavra povo. Só que, para um demagogo, o povo não é a sociedade de cidadãos conscientes, bem informados e detentores do poder de interferir, pelo voto, na escolha dos destinos coletivos. Povo, para um demagogo, é massa de manobra, bucha de canhão.

Corruptos e demagogos estão sempre aliados no menosprezo cínico à ética de resultados. Adoram a farsa. Por isso, em todas as culturas, em todos os países, em todas as latitudes e longitudes, terminam apelando para um velho argumento que todos nós, alguma vez, já ouvimos: “rouba mas faz”.

Frigindo os ovos no cotidiano

É no frigir dos ovos do cotidiano que nos confrontamos com essas três éticas. Cada um de nossos atos, quando inseridos no palco das interações sociais de todos os dias, pode ser visto e analisado dos três pontos de vista.

Caminhando pela rua, andando de metrô, dirigindo um automóvel, surfando na Internet, fazendo uma prova na faculdade, estamos confrontados, a todo momento, com a ética pessoal, a ética de princípios e a ética de resultados.

Pode ocorrer que, em um ou outro momento, uma delas assuma, do nosso ponto de vista pessoal, maior importância do que as demais. Mas não há como escapar às questões que elas comportam quando se trata de assumir, finalmente, uma posição e de decidir por um curso de ação.

Há sempre conflitos, emergência de necessidades, confrontações de desejos e de expectativas. Inúmeras questões resultam do simples fato de estarmos, num determinado aqui e agora — num determinado lugar, num dado momento da história, na relação com outros homens e mulheres com os quais compartilhamos nossa existência —, fazendo uma travessia que comporta, pelo simples fato de sermos seres viventes e carentes, inúmeras incertezas e indefinições.

Essa travessia, inevitavelmente, nos confronta com inúmeras frustrações e limitadas possibilidades de acesso aos recursos que possibilitarão a satisfação de nossos desejos e a obtenção de prazer.

A felicidade é efêmera, passageira. Não há prazer permanente, até porque, se fosse permanente, não seria prazer.

Neste contexto, muitas vezes, somos tentados a fazer barganhas, a conceder um pouco aqui para ganhar mais ali, a transigir, abdicar, de certo modo, da nossa condição de sujeitos.

É bem no seio dessa ambigüidade que nascem as transgressões, entre elas a corrupção.

Fazemos uma espécie de cisão, de corte, para reduzir tudo a um campo mais restrito, onde o que importa é a obtenção de satisfação, de prazer pessoal. Prazer que pode ser, simplesmente, satisfação sexual, apaziguamento da gula, obtenção de aplausos e satisfação narcísica, ou, em casos mais específicos, domínio sobre pessoas e obtenção de poder.

Predomina um egocentrismo que, no limite, se transforma em egoísmo.

O problema, no entanto, é que este tipo de solução para nossos conflitos termina por nos remeter a um mundo fechado, isolado, no qual os outros não têm lugar. Ou onde só poucos, muito poucos, igualmente compactuados neste menosprezo pelos outros, podem estar.

É por esse caminho que surgem as chamadas quadrilhas, camarilhas ou máfias: são grupos que reúnem pessoas que têm, entre si, este pacto de menosprezo. O pior de tudo, neste caso, é que por compartilharem este desprezo pelos outros, tornam-se pouco confiáveis também como parceiros, já que o que os une não é um vínculo de afeto verdadeiro.

A característica mais terrível de grupos deste tipo é a de que, neles, o lugar do afeto é ocupado pela lealdade.

Por isso, nesses grupos não existe complacência, não existe perdão. Precisam, desesperadamente, do segredo, do disfarce, da ocultação. Odeiam a clareza, a interpelação, a transparência.

Diante da quebra da confiança, da perda da lealdade, a solução última é a morte.

É o que se descreve, classicamente, como a característica da máfia, dos grupos de mafiosos.

São grupos nos quais, no primeiro momento, se entra vivo, mas dos quais, depois, só se sai morto.

E são grupos nos quais não existe verdadeiro afeto: o que neles existe são alianças, sem espaço para divergências, de tal modo que, dentro deles, toda afetividade é pervertida em lealdade.

Na máfia, quando o “capo” condena alguém à morte, dá-lhe o beijo da morte: símbolo máximo da perversão do afeto.

Há um custo enorme resultante da constituição de grupos como esses.

Em primeiro lugar, para o comum das pessoas, que são por eles logradas: a elas, de uma forma direta ou mais indireta, surrupiam o acesso a recursos que lhes caberiam, e que poderiam satisfazer suas necessidades. Em alguns casos, sofrem o achaque muito mais diretamente, sob a forma de extorsão.

No caso da corrupção política, inclusive, esse quadro de dano se estende sobre um número imenso de pessoas. O dano psíquico, neste caso, resulta do sofrimento generalizado, das frustrações que se manifestam pela inexistência de recursos para atender a necessidades básicas de muitas pessoas, da falta de serviços públicos, de atendimento condizente à população. Dano que se expressa, em última análise, em dor psíquica: são as lágrimas vertidas diante da descrença, do desespero, da desesperança, da depressão, da falta, da doença e da morte.

Em segundo lugar, para os próprios envolvidos. Porque, já de início, tornam-se pessoas incapazes de fruir o prazer de viver, de compartilhar com os outros sentimentos verdadeiros. Em seu mundo psíquico só há espaço para maquinações de poder, manipulação de pessoas e tentativas de escamoteamento.

Quando o pacto é descoberto e a farsa vem à luz, pagam um preço ainda bem mais alto. Aparecem para nós como seres desprezíveis, vão se tornando cada vez mais miseráveis de humanidade, para terminar num ostracismo terrível, resultante do peso que sobre eles se abate da repulsa coletiva de toda a sociedade. Tornam-se, enfim, o que sempre foram: pessoas sós, encarceradas em seu próprio egoísmo.

Para evitarmos que a ética seja transgredida no espaço público, é essencial que haja democracia.

É fundamental que exista, na sociedade como um todo e, particularmente, na estrutura institucional do Estado, espaços de interpelação social, de tal modo que os cidadãos possam questionar o uso de recursos, o abuso de poder, as falhas no reconhecimento de direitos, e daí por diante.

É por isso que venho defendendo a prática do que chamo de democracia interpelativa, ou seja, a multiplicação em toda a sociedade, de um modo capilar, de espaços onde as pessoas possam se reunir e discutir os temas fundamentais da convivência cotidiana.

Como este lugar aqui: uma biblioteca pública, no centro desta grande capital que é São Paulo, que promove um ciclo de debates aberto a quem quiser dele participar.

É desta forma que a consciência coletiva se constitui, que as idéias circulam, que os novos líderes emergem, que as grandes questões da cidadania se renovam e se revigoram.

Não existe melhor antídoto para a corrupção do que esta prática interpelativa.

Fico, então, por aqui.

Espero ter colaborado, com essas considerações, para as reflexões e as contribuições que vocês acrescentarão a este debate.

Obrigado.


[xxxiv] 2 - voltar Velloso, Marco A. F. Filósofo, psicanalista e Diretor do InterPsic S. C. Ltda. http://www.interpsic.com.br.

 

 

 



 

 

[ii] 3 - voltar Na abertura da intervenção original o presente parágrafo era precedido pelo seguinte texto:
“Inicio manifestando meus agradecimentos à Biblioteca Mário de Andrade, especialmente à Daisy Perelmutter (historiadora, coordenadora das atividades do Colégio de São Paulo — do qual este debate fez parte — e do Projeto de Memória Oral da Biblioteca Mário de Andrade.), pelo convite para participar deste debate. Sinto-me também honrado por dividir esta mesa com o Prof. Marcos Fernandes (Silva, Marcos Fernandes Gonçalves da — Professor da Faculdade de Economia da FGV — Fundação Getúlio Vargas ), que tem se dedicado ao estudo do tema corrupção de forma muito especial (Silva, Marcos Fernandes Gonçalves da. A Economia Política da Corrupção no Brasil. SENAC São Paulo: São Paulo, 2002.).”

[iii] 4 - voltar Lênin, Vladimir Ilitch — Que Fazer? As Questões Palpitantes do Nosso Movimento. Hucitec. São Paulo, 1988.

[iv] 5 - voltar No texto original, este parágrafo era precedido pelo seguinte:
Preparei esse texto com o objetivo de oferecer minha colaboração para esta tarefa de vocês, buscando uma exposição clara e o mais sucinta possível.
Organizei o tema da seguinte forma:

[v] 6 - voltar No texto original, acrescentava:
“Confesso que consegui ser mais claro do que sucinto. Abusei da generosidade de alguns amigos e de minha mulher para que me ajudassem a encurtar ao máximo este texto.
Chegamos a um ponto, no final, em que achamos que, se cortássemos mais, perderíamos a clareza. O equilíbrio ótimo entre brevidade e clareza, às vezes, é difícil de ser encontrado.
Então, peço licença a vocês para me estender um pouco mais do que o previsto. Conto com sua paciência e colaboração, esperando que, no final, o esforço valha a pena.”

[vi] 7 - voltar O IHEU - International Humanist and Ethical Union adotou, em 1996, a seguinte definição para a palavra humanismo: "Humanism is a democratic and ethical life stance, which affirms that human beings have the right and responsibility to give meaning and shape to their own lives. It stands for the building of a more humane society through an ethic based on human and other natural values in the spirit of reason and free inquiry through human capabilities. It is not theistic, and it does not accept supernatural views of reality. '' No site Humanismo Secular - Portugal esta definição é assim traduzida para o português: “O Humanismo é uma postura de vida democrática e ética, que afirma que os seres humanos têm o direito e a responsabilidade de dar sentido e forma às suas próprias vidas. Defende a construção de uma sociedade mais humana, através de uma ética baseada em valores humanos e outros valores naturais, dentro do espírito da razão e do livre-pensamento, com base nas capacidades humanas. Não é deísta e não aceita visões sobrenaturais da realidade.”
http://www.iheu.org/node/178 e http://portugal.humanists.net/ (Acesso em 30/11/2005).

[vii] 8 - voltar Hawking , Stephen – Uma breve história do tempo. Rocco, Rio de Janeiro. 29ª Edição, 2002.

 

 

[viii] 9 - voltar O irracionalismo é uma corrente filosófica idealista muito em voga no século XVII, que negava a possibilidade de conhecimento racional da realidade. Um de suas maiores expressões é o cientista, matemático e filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662), a quem devemos a expressão muito conhecida de que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Um exemplo recente do ativismo deste tipo de idealismo irracionalista é o filme de Betsy Chasse , Mark Vicente , William Arntz, “What bleep do we know”, “Quem somos nós” na versão brasileira, que está sendo atualmente projetado nos circuitos comerciais do país.

[ix] 10 - voltar Ockham, William (1285-1349 ou 1350), lógico, filósofo e teólogo escolástico inglês,  tido como criador da teoria da Navalha de Ockham, que atualmente é assim enunciada: se há várias explicações igualmente válidas para um fato, então devemos escolher a mais simples. Na formulação original, dizia que "as entidades não devem ser multiplicadas além do necessário, a natureza é por si econômica e não se multiplica em vão".

[x] 11 - voltar Um exemplo desse tipo de postura é a declaração de Mohamed Faizeen, do Centro de Estudos Islâmicos de Colombo (capital do Sri Lanka), a respeito da recente tsunami que assolou grande parte da Ásia em 26 de dezembro de 2004: “Alá assinou com seu nome e advertiu que é um castigo por ter ignorado seus mandamentos”.

[xi] 12 - voltar Veil, Simone (1927-2017) – política conservadora francesa, mais conhecida como a Ministra da Saúde nomeada em 1974 por Jacques Chirac, cargo que conservou também no governo seguinte de Raymond Barre, até Julho de 1979. Foi nesta condição que defendeu o projeto de lei que, em 1975, legalizou a interrupção voluntária da gravidez na França. Foi também a primeira mulher a presidir o Parlamento Europeu (1979-1982). É, desde 1998, membro do Conselho Constitucional da França.

[xii] 13 - voltar Ortega y Gasset, José —Meditações do Quixote [1914]. Trad. Kujawski, Gilberto de Mello. Libro Ibero. 1967.

[xiii] 14 - voltar A frase original de Gasset é a seguinte: "Eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela não salvo a mim".

[xiv] 15 - voltar Donne John, poeta inglês citado por Hemingway na epígrafe de seu romance sobre a Guerra Civil Espanhola, Por Quem os Sinos Dobram. O texto completo da citação é o seguinte: “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. e por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por TI”.

[xv] 16 - voltar Hemingway, Ernest. Por Quem os Sinos Dobram. Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 2004.

[xvi] 17 - voltar Sarte, Jean Paul. Entre quatro paredes. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2004.

[xvii] 18 - voltar Andrade, Carlos Drummond. No meio do caminho. In Revista de Antropofagia [1928]. Posteriormente incluído em Alguma poesia [1930]. Editora Record: Rio de Janeiro, 2001.

[xviii] 19 - voltar O texto completo do poema é o seguinte:
“No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.”

[xix] 20 - voltar Pichon-Rivière, Enrique. O processo grupal. Martins Fontes: São Paulo, 1983.

[xx] 21 - voltar Stouffer, Samuel — American Soldier: Adjustment During Army Life (American Soldier). M A/A H Publishing; Photocopy edition. Manhattan, Kans., 1949.

[xxi] 22 - voltar Este estudo, realizado em 1949, tornou-se famoso no campo da sociologia e da psicologia social. Neste estudo foi extensamente estudado comportamentos de lealdade e de criação de moral de grupo (esprit de corps). A ele devemos a introdução do conceito de grupo de referência, de grande importância para a compreensão de comportamentos sociais frente a conflitos de status.

[xxii] 23 - voltar Referência à ultima partida da série de classificação para Copa do Mundo de Futebol de 2006 travada entre a seleção brasileira e a da Venezuela, partida realizada no dia 12/10/2005 no Estádio do Mangueirão, em Belém do Pará, vencida pelo Brasil por 3 x 0. A população de Belém ficou extremamente excitada com o acontecimento, o que provocou diversos incidentes na véspera, durante o treinamento da seleção no mesmo estádio, diante de um público excepcional de 65.000 pessoas. Um grande número de pessoas não conseguiu entrar para assistir ao treino, comprimindo-se contra os portões que foram fechados em razão de o estádio se encontrar lotado. Esses fatos exigiram grande esforço no controle da massa de torcedores no dia do jogo, com a utilização de um efetivo policial de 1.500 homens. Comentaristas da imprensa diziam que “Belém enlouqueceu”.

[xxiii] 24 - voltar Referência a outro episódio futebolístico, desta vez ocorrido em São Paulo no dia 14/07/2005. Torcedores que não conseguiram ingresso para o jogo decisivo entre o São Paulo e o Atlético Paranaense pela decisão da Copa Libertadores, dirigiram-se para a avenida Paulista na expectativa de poderem assistir ao jogo através dos grandes painéis publicitários ali instalados. Não ficou esclarecido como foi gerada esta expectativa, já que tais painéis não são preparados para este tipo de exibição. Houve um quebra-quebra generalizado, com destruição de casas comerciais, bancos, orelhões e depredação de mais de trinta ônibus. No dia seguinte, o espetáculo era o de uma praça de guerra, após a batalha.

[xxiv] 25 - voltar Valdés, Ernesto Garzón. — Lo íntimo, lo privado y lo público. In Cuadernos de transparencia 06. IFAI – Instituto Federal de Acceso a la Información Pública: México, 2005. http://www.ifai.org.mx. (Acesso em 14/11/2005)

[xxv] 26 - voltar Arrière-pensée que em tradução direta do francês significaria “pensamento por trás” pode ser melhor traduzido para o português pela expressão “segunda intenção”.

[xxvi] 27 - voltar Nos meus tempos de estudante de filosofia na UFMG, lá pelos idos de 1965, era comentado o longo interrogatório a que foi submetido nosso professor, o Pe. Henrique de Souza Vaz, S. J., que era jesuíta, pelo DOPS - Departamento de Ordem Política e Social, nos tempos da ditadura. Durante o mesmo, era o comentário corrente, a cada pergunta formulada pelos policiais, Pe. Vaz respondia com uma longa digressão filosófica a respeito dos pressupostos sobre os quais o questionamento se assentava. Com esse artifício conseguiu cansar seus argüidores, falando muito sem dizer absolutamente nada a respeito do que lhe perguntavam.

[xxvii] 28 - voltar Obviamente, quando a restrição mental é utilizada fora desse contexto extremo de imperativa necessidade de proteção da intimidade, constitui-se numa burla, numa simulação, numa mentira deslavada. Portanto, por favor, não entendam essa minha explicação sobre o uso da restrição mental neste caso extremo da defesa da integridade pessoal como uma recomendação favorável à falta com a verdade.

[xxviii] 29 - voltar Bleger, J. Temas de Psicologia – Entrevistas e Grupos. Martins Fontes: São Paulo, 1987.

[xxix] 30 - voltar Freud, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica [1895]. In Ed. Standard Brasileira das Obras Completas v.1. Imago: Rio de Janeiro, 1974.

[xxx] 31 - voltar Freud, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos [1900]. In Ed. Standard Brasileira das Obras Completas. vol. IV e V. Imago: Rio de Janeiro, 1974.

[xxxi] 32 - voltar Freud, Sigmund., Totem e tabu [1913]. In Ed. Standard Brasileira das Obras Completas v. 13. Imago: Rio de Janeiro, 1974.

[xxxii] 33 - voltar Pellegrino, H. Pacto edípico e pacto social. In: PY, L. A. ( Org.). Grupo sobre grupo. Editora Rocco: Rio de Janeiro, 1987.

[xxxiii] 34 - voltar Bobbio, Norberto. O filósofo e a política: antologia. Contraponto: São Paulo, 2003.