I. Introdução:
Desde já, quero advertir: hoje, para quem se propõe a perscrutar o futuro,
não se trata de reconhecimento de incompetência, mas, sim, de indispensável
afirmação de honestidade intelectual, postular, no atual estágio de
desenvolvimento das teorias e da compreensão global do processo de mudança
que a humanidade atravessa, a impossibilidade da formulação de interpretação
de longo prazo mais abrangente e consistente quanto ao horizonte que
se descortina diante de nós. Muitas das certezas de há 15 ou 20 anos
atrás se perderam no meio do turbilhão de mudanças que estamos atravessando.
Outro comentário preliminar é também indispensável: apesar da força
imperiosa que o processo de mudança social e econômica em âmbito
universal e global exerce sobre nossas vidas, tenho observado,
e com mais freqüência do que desejaria, que as pessoas não se dispõem
facilmente a escutar quem fala disso, impacientando-se rapidamente com
o tema.
Sinto dizer-lhes, no entanto, que o clima de crise associado a este
processo de mudança veio para ficar. Viveremos em crise nas próximas
décadas, não só no Brasil, mas em todo o planeta
simplesmente
porque já iniciamos a travessia de um daqueles especialíssimos momentos
da História em que a humanidade dá um salto e muda totalmente a fisionomia
das civilizações.
Recomendo-lhes, portanto, e desde logo, bastante paciência e muita serenidade
se querem percorrer o caminho, na verdade tão entrelaçado, entre a dimensão
do desvendamento dos futuros efeitos concretos das mudanças nas relações
econômicas e sociais e os impactos emocionais que a consciência desses
fatos provoca em todos nós.
Riqueza e miséria humanas se misturam, nesse particular momento, obrigando-nos
a reconhecer a dimensão qualitativamente nova das imensas potencialidades
e das abismalmente trágicas necessidades que espoucam por toda parte.
Como dizia Marx (1978):
Vê-se
como no lugar da riqueza e da miséria da economia política, surge
o homem rico e o rico carecimento humano. O homem rico é, ao mesmo
tempo, o homem carente de uma totalidade de exterioração da vida humana,
o homem no qual sua própria efetivação existe como necessidade interna,
como carência.
II.
Porque construir cenários?
A condição existencial humana apresenta uma característica particularíssima:
o presente dos seres humanos, ao mesmo tempo, nem se explica se for
desconsiderado seu passado e nem se sustenta sem uma referência de projeto
para o futuro. É nessa interseção do tempo no instante vívido
da duração que a consciência do passado e a perspectiva do projeto
estabelecem o limite entre praxis transformadora e alienação submissa
e fatalista.
É essa a exata medida do grande desafio para os seres humanos: conseguir
sair da condição de objetos de cegas transformações históricas para
assumir o papel de sujeitos do próprio destino.
Esse imperativo da passagem da condição de objeto para a de sujeito
se impõe tanto ao indivíduo em particular quanto às instituições e às
comunidades, abrindo para cada um de nós a dimensão da aquisição da
identidade criativa (na verticalidade da história individual) e da cidadania
(na horizontalidade de nossa inserção na história coletiva): de uma
parte, se todo ato humano quando considerado do ponto de vista
de sua inserção na dimensão do coletivo é um ato político, um
ato humano, sem projeto, é um ato político alienado e inconseqüente;
de outra parte, se todo ato humano quando considerado do ponto
de vista de seu significado na expressão da individualidade é
uma tentativa de adaptação ao meio, todo ato humano sem projeto, é um
fracasso passivo de adaptação, que não consegue ser criativo e ativamente
comprometido com a mútua modificação do sujeito e de seu meio.
Construir cenários viáveis para o futuro faz parte do processo de elaboração
de projetos, tanto individuais quanto coletivos.
E é exatamente porque estamos em um processo de mudanças aceleradas
que é mais necessário do que nunca construir cenários. Mais ainda: é
necessário construir e reconstruir continuamente novos cenários, porque
novos fatos surgem com celeridade, e é necessário conferir, a todo instante,
se as hipóteses de futuro sobre as quais sustentamos a construção de
nossos projetos ainda se sustentam, ou se não se encontram ameaçadas
por novos fatores anteriormente não previstos.
Na França, por exemplo, os trabalhos de Godet (1991,1993) com
sua proposta de prospectiva estratégica estão voltados não só
para o embasamento das decisões estratégicas das empresas privadas ou
para o balizamento das decisões das administrações públicas como no
caso da implantação do novo aeroporto de Paris; estendem-se também à
vida das comunidades, onde a organização do debate envolvendo os diversos
setores da sociedade permite à comunidade de um determinado município
a definição de cenários prováveis e desejáveis que favorecem a definição
de uma linha estratégica para o planejamento de seu crescimento e a
consolidação de uma identidade coletiva e de uma vocação econômica no
contexto regional e nacional no qual se insere.
O encontro do cenário que preencha a dupla condição do desejável (ou
seja, que melhor corresponde aos interesses e necessidades de quem desenvolve
a prospecção) e do provável (ou seja, que corresponde a condições concretas
que permitem visualizar sua efetivação) é que permitirá a qualquer grupo
humano (instituição ou comunidade) a instrumentalização dessa passagem
da condição de objeto para a de sujeito, organizando os esforços e dirigindo-os,
conscientemente, para a concretização do futuro escolhido.
Sem esta escolha consciente de futuro, não há estratégia e nem direcionamento
consistente dos esforços de construção: só há oportunismo e demagogia,
falsas esperanças, pés solidamente plantados no ar
e frustração,
como resultado inevitável da imprecisão do navegar das naus de insensatos.
III. Prospecção de cenários, um trabalho de equipe
Há muitos métodos diferentes de trabalho para a prospecção estratégica
e a definição de cenários, alguns dos quais se valem de recursos muito
sofisticados, como é o caso, por exemplo, das propostas de Godet (1991,1993),
com intensivo uso de cálculo matricial e outros meios estatísticos de
sustentação das decisões.
Qualquer que seja a escolha, no entanto, quanto ao método de trabalho,
não se deve perder de vista que construção de cenários é uma tarefa
de equipe, e, como tal, implica na utilização consciente de conhecimentos
de dinâmica grupal.
Nas instituições, pode estar atribuída a um grupo especial de diretores
e gerentes, envolvendo, ocasionalmente, um maior número de pessoas em
momentos específicos. Do mesmo modo, nas comunidades, a responsabilidade
básica cabe aos dirigentes, mas é fundamental que existam processos
de participação que permeiem a rede dos vínculos comunitários, de modo
a se garantir legitimidade para as propostas resultantes das estratégias
definidas.
Esta característica grupal e coletiva dos trabalhos de prospecção de
cenários e de formulação de estratégias é fundamental.
Muitas vezes, há a tendência de se ver este tipo de atividade como um
trabalho técnico, desprovido de qualquer conteúdo emocional e descarnado
da dramaticidade dinâmica dos processos coletivos humanos. Esse é um
erro muito grave.
Na verdade, em toda tarefa humana, e muito mais intensamente ainda,
nas tarefas dos grupos que se encarregam de pensar e planejar o futuro,
há sempre o entrechoque dialético entre as forças progressistas e as
forças conservadoras. Em outros termos, não há grupo humano em que não
se ache presente, e ao mesmo tempo, mudança e resistência à mudança,
reprodução do velho e produção do novo. Isso é natural e sadio.
Ocorre, no entanto, que se não forem adequadamente tratadas as intensas
mobilizações de caráter afetivo que esse entrechoque de novo e de velho
provocam nos grupos de trabalho, muito rapidamente se instala neles
um padrão estereotipado de relações, redundantemente improdutivo, onde
tudo acontece para que nada aconteça.
Por isso, os grupos de reflexão prospectiva e estratégica devem ser
sempre acompanhados por profissionais experientes e "de fora"
da instituição ou da comunidade: a eles cabe a tarefa primordial de
trabalhar os obstáculos à mudança presentes no próprio grupo, favorecendo
o "falar do não-falado" para permitir o desvendamento dos
conteúdos relacionados aos medos de perder e de ser atacado que todo
processo de mudança comporta.
O processo de construção de cenários e de elaboração de estratégias,
portanto, é um desafio, e um desafio para além da mera dificuldade técnica
de perscrutar o futuro. É um desafio humano, vivido dramaticamente pelos
grupos que se propõem a enfrentá-lo e superá-lo.
No fundo, se nos propomos a prospectar cenários e a definir estratégias,
em algum nível, estamos nos propondo a provocar rupturas, saltos qualitativos,
superação da mesmice com a introdução irruptiva da inovação.
Porque o desafio é mudar
e mudar para melhor.
Referências bibliográficas
Godet,
Michel
(1991)
De lanticipation à laction - Manuel de Prospective
et de Stratégie; préface de Jean-Louis Beffa. Paris, Dunod, 390p..
(1993) Manual de Prospectiva Estratégica Da antecipação
à acção; prefácio de Jean-Louis Beffa;trad. Freitas e Silva, J.;rev.
téc. Perestrelo, Margarida. Lisboa, Dom Quixote, 405p..
Marx,
Karl
(1978)
Manuscritos econômico-filosóficos - terceiro manuscrito (1844)
; sel. de José Athur Giannotti; trad. de José Carlos Bruni. In
Marx, Coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril, 1-48.
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