O desafio de
construir cenários

 

Marco Aurélio Fernandez Velloso

 


I. Introdução:

Desde já, quero advertir: hoje, para quem se propõe a perscrutar o futuro, não se trata de reconhecimento de incompetência, mas, sim, de indispensável afirmação de honestidade intelectual, postular, no atual estágio de desenvolvimento das teorias e da compreensão global do processo de mudança que a humanidade atravessa, a impossibilidade da formulação de interpretação de longo prazo mais abrangente e consistente quanto ao horizonte que se descortina diante de nós. Muitas das certezas de há 15 ou 20 anos atrás se perderam no meio do turbilhão de mudanças que estamos atravessando.

Outro comentário preliminar é também indispensável: apesar da força imperiosa que o processo de mudança social e econômica — em âmbito universal e global — exerce sobre nossas vidas, tenho observado, e com mais freqüência do que desejaria, que as pessoas não se dispõem facilmente a escutar quem fala disso, impacientando-se rapidamente com o tema.

Sinto dizer-lhes, no entanto, que o clima de crise associado a este processo de mudança veio para ficar. Viveremos em crise nas próximas décadas, não só no Brasil, mas em todo o planeta… simplesmente porque já iniciamos a travessia de um daqueles especialíssimos momentos da História em que a humanidade dá um salto e muda totalmente a fisionomia das civilizações.

Recomendo-lhes, portanto, e desde logo, bastante paciência e muita serenidade se querem percorrer o caminho, na verdade tão entrelaçado, entre a dimensão do desvendamento dos futuros efeitos concretos das mudanças nas relações econômicas e sociais e os impactos emocionais que a consciência desses fatos provoca em todos nós.

Riqueza e miséria humanas se misturam, nesse particular momento, obrigando-nos a reconhecer a dimensão qualitativamente nova das imensas potencialidades e das abismalmente trágicas necessidades que espoucam por toda parte.

Como dizia Marx (1978):

 

‘Vê-se como no lugar da riqueza e da miséria da economia política, surge o homem rico e o rico carecimento humano. O homem rico é, ao mesmo tempo, o homem carente de uma totalidade de exterioração da vida humana, o homem no qual sua própria efetivação existe como necessidade interna, como carência.’

II. Porque construir cenários?

A condição existencial humana apresenta uma característica particularíssima: o presente dos seres humanos, ao mesmo tempo, nem se explica se for desconsiderado seu passado e nem se sustenta sem uma referência de projeto para o futuro. É nessa interseção do tempo — no instante vívido da duração — que a consciência do passado e a perspectiva do projeto estabelecem o limite entre praxis transformadora e alienação submissa e fatalista.

É essa a exata medida do grande desafio para os seres humanos: conseguir sair da condição de objetos de cegas transformações históricas para assumir o papel de sujeitos do próprio destino.

Esse imperativo da passagem da condição de objeto para a de sujeito se impõe tanto ao indivíduo em particular quanto às instituições e às comunidades, abrindo para cada um de nós a dimensão da aquisição da identidade criativa (na verticalidade da história individual) e da cidadania (na horizontalidade de nossa inserção na história coletiva): de uma parte, se todo ato humano — quando considerado do ponto de vista de sua inserção na dimensão do coletivo — é um ato político, um ato humano, sem projeto, é um ato político alienado e inconseqüente; de outra parte, se todo ato humano — quando considerado do ponto de vista de seu significado na expressão da individualidade — é uma tentativa de adaptação ao meio, todo ato humano sem projeto, é um fracasso passivo de adaptação, que não consegue ser criativo e ativamente comprometido com a mútua modificação do sujeito e de seu meio.

Construir cenários viáveis para o futuro faz parte do processo de elaboração de projetos, tanto individuais quanto coletivos.

E é exatamente porque estamos em um processo de mudanças aceleradas que é mais necessário do que nunca construir cenários. Mais ainda: é necessário construir e reconstruir continuamente novos cenários, porque novos fatos surgem com celeridade, e é necessário conferir, a todo instante, se as hipóteses de futuro sobre as quais sustentamos a construção de nossos projetos ainda se sustentam, ou se não se encontram ameaçadas por novos fatores anteriormente não previstos.

Na França, por exemplo, os trabalhos de Godet (1991,1993) — com sua proposta de prospectiva estratégica — estão voltados não só para o embasamento das decisões estratégicas das empresas privadas ou para o balizamento das decisões das administrações públicas como no caso da implantação do novo aeroporto de Paris; estendem-se também à vida das comunidades, onde a organização do debate envolvendo os diversos setores da sociedade permite à comunidade de um determinado município a definição de cenários prováveis e desejáveis que favorecem a definição de uma linha estratégica para o planejamento de seu crescimento e a consolidação de uma identidade coletiva e de uma vocação econômica no contexto regional e nacional no qual se insere.

O encontro do cenário que preencha a dupla condição do desejável (ou seja, que melhor corresponde aos interesses e necessidades de quem desenvolve a prospecção) e do provável (ou seja, que corresponde a condições concretas que permitem visualizar sua efetivação) é que permitirá a qualquer grupo humano (instituição ou comunidade) a instrumentalização dessa passagem da condição de objeto para a de sujeito, organizando os esforços e dirigindo-os, conscientemente, para a concretização do futuro escolhido.

Sem esta escolha consciente de futuro, não há estratégia e nem direcionamento consistente dos esforços de construção: só há oportunismo e demagogia, falsas esperanças, pés solidamente plantados no ar… e frustração, como resultado inevitável da imprecisão do navegar das naus de insensatos.

III. Prospecção de cenários, um trabalho de equipe


Há muitos métodos diferentes de trabalho para a prospecção estratégica e a definição de cenários, alguns dos quais se valem de recursos muito sofisticados, como é o caso, por exemplo, das propostas de Godet (1991,1993), com intensivo uso de cálculo matricial e outros meios estatísticos de sustentação das decisões.

Qualquer que seja a escolha, no entanto, quanto ao método de trabalho, não se deve perder de vista que construção de cenários é uma tarefa de equipe, e, como tal, implica na utilização consciente de conhecimentos de dinâmica grupal.

Nas instituições, pode estar atribuída a um grupo especial de diretores e gerentes, envolvendo, ocasionalmente, um maior número de pessoas em momentos específicos. Do mesmo modo, nas comunidades, a responsabilidade básica cabe aos dirigentes, mas é fundamental que existam processos de participação que permeiem a rede dos vínculos comunitários, de modo a se garantir legitimidade para as propostas resultantes das estratégias definidas.

Esta característica grupal e coletiva dos trabalhos de prospecção de cenários e de formulação de estratégias é fundamental.

Muitas vezes, há a tendência de se ver este tipo de atividade como um trabalho técnico, desprovido de qualquer conteúdo emocional e descarnado da dramaticidade dinâmica dos processos coletivos humanos. Esse é um erro muito grave.

Na verdade, em toda tarefa humana, e muito mais intensamente ainda, nas tarefas dos grupos que se encarregam de pensar e planejar o futuro, há sempre o entrechoque dialético entre as forças progressistas e as forças conservadoras. Em outros termos, não há grupo humano em que não se ache presente, e ao mesmo tempo, mudança e resistência à mudança, reprodução do velho e produção do novo. Isso é natural e sadio.

Ocorre, no entanto, que se não forem adequadamente tratadas as intensas mobilizações de caráter afetivo que esse entrechoque de novo e de velho provocam nos grupos de trabalho, muito rapidamente se instala neles um padrão estereotipado de relações, redundantemente improdutivo, onde tudo acontece para que nada aconteça.

Por isso, os grupos de reflexão prospectiva e estratégica devem ser sempre acompanhados por profissionais experientes e "de fora" da instituição ou da comunidade: a eles cabe a tarefa primordial de trabalhar os obstáculos à mudança presentes no próprio grupo, favorecendo o "falar do não-falado" para permitir o desvendamento dos conteúdos relacionados aos medos de perder e de ser atacado que todo processo de mudança comporta.

O processo de construção de cenários e de elaboração de estratégias, portanto, é um desafio, e um desafio para além da mera dificuldade técnica de perscrutar o futuro. É um desafio humano, vivido dramaticamente pelos grupos que se propõem a enfrentá-lo e superá-lo.

No fundo, se nos propomos a prospectar cenários e a definir estratégias, em algum nível, estamos nos propondo a provocar rupturas, saltos qualitativos, superação da mesmice com a introdução irruptiva da inovação.

Porque o desafio é mudar… e mudar para melhor.


 

Referências bibliográficas

Godet, Michel

(1991) De l’anticipation à l’action - Manuel de Prospective et de Stratégie; préface de Jean-Louis Beffa. Paris, Dunod, 390p..

(1993) Manual de Prospectiva Estratégica – Da antecipação à acção; prefácio de Jean-Louis Beffa;trad. Freitas e Silva, J.;rev. téc. Perestrelo, Margarida. Lisboa, Dom Quixote, 405p..

Marx, Karl

(1978) Manuscritos econômico-filosóficos - terceiro manuscrito (1844) ; sel. de José Athur Giannotti; trad. de José Carlos Bruni. In Marx, Coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril, 1-48.


Artigo publicado no site do InterPsic: http://www.interpsic.com.br/saladeleitura/texto43.html , São Paulo. 1.99