Essa
sensação de estreitamento do horizonte de tempo, ou essa crença de
fim dos tempos, mobiliza ansiedades primitivas de alto poder motivacional:
medos de perda e ansiedade de morte, fundamentalmente, capazes de
provocar fortes processos de depressão.
Ainda
nessa mesma perspectiva do déficit de simbolização, a ultrapassagem
do marco psicológico da passagem (ou seja, a chegada de 2001) certamente
provocará, em muitos, o fenômeno contrário: a súbita euforia, o desafogo
da tensão diante de um horizonte de tempo magicamente estendido para
além do limite da expectativa média de vida.
Para
além desses aspectos gerais, que permanecem no pano de fundo da consideração
do contexto psicossocial no umbral do novo milênio, é fundamental
também considerar outras questões importantes.
Em
conseqüência da aceleração das mudanças econômicas e sociais neste
fim de século, e da perspectiva hoje já bastante aceita de que esse
processo se prolongará, no mínimo, até a metade do próximo século,
o grande mal contemporâneo e que, provavelmente, será dominante durante
grande parte do século XXI, é o da anomia.
De
fato, a aceleração das mudanças traz consigo a perda de referências
sociais (normas, valores, pautas de conduta), e se constitui, tanto
do ponto de vista coletivo quanto individual, numa ameaça à integridade
da identidade dos indivíduos e dos grupos sociais.
De
um lado, as pautas culturais, e as formas institucionais de organização
econômica e social, estão a cada dia se tornando, e de forma acelerada,
obsoletas e inadequadas diante das inovações que o desenvolvimento
tecnológico, a integração planetária das comunicações e a globalização
da economia, propõem a todo instante.
Essa
conjunção de umbral de novo milênio com a aceleração dos processos
de mudança cria, portanto, um contexto psicossocial paradoxal: de
um lado, estamos diante da abertura de possibilidades absolutamente
novas e criativas para a humanidade, com um leque de recursos que
viabilizam, pela primeira vez na História, uma gama incrível de novos
potenciais de realização para os seres humanos; de outro, a perda
de referências e as ansiedades a que acima nos referimos provocam
a disseminação, em larga escala, do fenômeno da anomia, o que aumenta
a freqüência do aparecimento de comportamentos inesperados, muitas
vezes carregados de alto teor de destrutividade.
Essa
experiência do paradoxo é muito concreta, e dela não há como escapar.
Possibilidades
novas de comunicação, de expressão, de transporte e de criação borbulham
ao nosso redor: a Internet é um desses novos recursos que se disseminam
com uma velocidade impressionante, constituindo-se num exemplo muito
visível, mas não único. Recursos digitais, meios de comunicação cada
vez mais interativos e personalizados, integram-se a cada dia na intimidade
de nossa vida, e provocando mudanças de conduta de uma força impressionante.
Em razão deles, estamos assistindo ao surgimento de uma nova forma
de solidariedade entre os seres humanos que independe de barreiras
geográficas ou de limites políticos definidos pelas fronteiras de
países, e encaminhando-se muito rapidamente para a consolidação de
uma espécie de consciência de cidadania global.
Ao
mesmo tempo, e num sentido inverso mas concomitante, sentimos os efeitos
da barbárie que se dissemina na civilização em razão da anomia: fanáticos,
suicidas, perversos, surgem como que de repente, e de forma espetacular,
do próprio cerne do quotidiano, quase sem qualquer razão aparente
ou motivação especial, espalhando terror e destrutividade, muitas
vezes com um cinismo impressionante e descarado.
Uma
particularidade da anomia é o da instabilidade de respostas comportamentais,
que parecem não se enquadrar em nenhum dos modelos patológicos com
os quais nos habituamos a lidar; ou melhor, num momento, a resposta
de conduta pode corresponder a uma forma para, logo a seguir, se apresentar
sob aspecto inteiramente diverso. É em razão disso que, como profissionais
de saúde mental, o sentimento de impotência tantas vezes inconfesso
muitas vezes nos assalta: como bem sabemos, já não há mais
loucos como os de antigamente!
A
anomia e o ciclo de destruição e reconstrução de pautas culturais
Na
verdade, para que uma nova civilização surja, é necessário destruir
os referenciais segundo os quais vivemos, para reconstruí-los logo
adiante, de novo destruí-los para, mais uma vez, reconstruí-los, e
assim sucessivamente.
Até
que novas pautas surjam e se institucionalizem, há grande confusão,
levando de roldão nações inteiras, povos e pessoas.
De
fato, essa destruição e essa reconstrução se fazem quotidianamente,
e quase imperceptivelmente, no diuturno e inexorável processo de reprodução
e inovação das relações sociais: sua repetição, no entanto, resulta
numa acumulação quantitativa que termina por se transformar numa mudança
qualitativa que, no mínimo, nos surpreende, quando não nos assusta.
Este
processo destrutivo-construtivo é a marca indelével de nossa espécie
e a anomia é a companheira inseparável das grandes mudanças históricas.
Porque os saltos históricos da humanidade foram e serão sempre dramáticos,
frente a impasses cujos limites pareciam intransponíveis aos seus
contemporâneos; e as conquistas da civilização cobraram no passado,
estão cobrando no presente, e cobrarão ainda mais no futuro, um alto
preço em vidas humanas.
Na
verdade, a resposta sadia à anomia implica num constante movimento
de avanço e de recuo: avanço na experienciação das mudanças e dos
novos recursos que se tornam disponíveis para a realização de nossas
potencialidades criativas; recuo na busca do refúgio das relações
interpessoais e intragrupais confiáveis, para, aí, se iniciar a reconstrução
de novas referências.
Esse
é o processo pelo qual, quotidianamente, e ao mesmo tempo, superamos
a anomia reinante, para repô-la, de novo, e com mais intensidade,
no momento seguinte. Resulta, na verdade, na reconstrução de vínculos
no espaço cotidiano das configurações dos grupos, das famílias e das
instituições.
É
nesse espaço que está o verdadeiro laboratório social da mudança,
é aí que começam a ser experimentados novos padrões de conduta, e
é daí que emergem, para se generalizarem na sociedade, através da
mídia e dos comportamentos coletivos, as novas pautas culturais criadas
para preencher o vazio das referências perdidas.
E
é por tudo isso que a psicologia social, particularmente a psicologia
dos grupos, das instituições e das comunidades, assume especial importância
no umbral do novo milênio.
Cada
vez mais os comportamentos coletivos se tornam fundamentais para o
êxito da construção desse novo mundo que se descortina diante de nós.
E os psicólogos sociais podem, na verdade, contribuir muito mais do
que estão contribuindo para que as pessoas adquiram mais rapidamente
recursos para se adaptarem melhor a esse processo de mudança acelerada
e de criação do novo.
É
necessário que se abram mais para a interdisciplinariedade, que desenvolvam
um novo olho clínico e novos métodos de intervenção, menos estereotipados
e mais próximos do cotidiano das pessoas, para exercerem com maior
eficácia seu papel neste momento tão desafiante da História da Humanidade.