A esquerda
e a dimensão
estratégico-institucional
da crise
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A crise política brasileira:
qual é a porta de saída?

Marco A. F. Velloso 2
26/10/2005

Primeiro de tudo, é bom encarar essa possibilidade: será ótimo se toda essa crise resultar em muitas cassações e numa sucessão de impedimentos: do Presidente da Câmara, do Presidente da República, de seu Vice e de quantos outros mais for preciso. Que resulte em prisões: de políticos, empresários, presidentes de Bancos, de estatais, de multinacionais. Não há risco institucional nenhum, nisso. Pelo contrário: o grande risco institucional estará em se isso não acontecer, porque as forças interessadas no abafamento dessas denúncias, capitaneadas por um acordão PSDB-PMDB-PFL, usarão a decomposição progressiva do governo para aplicar mais um golpe eleitoreiro da estatura de um ladrão de chinelas.
Depois, é preciso entender que sem a multiplicação do debate, a sua permeação por todos os espaços disponíveis na sociedade, não se encontrará uma única porta de saída –mesmo que transitória– para sua solução.
Precisamos do que chamo de democracia interpelativa, na qual o cidadão tem de fato acesso à informação, ao debate público, lugar em que as opções políticas surgem do intenso intercâmbio de idéias. Com mais informações circulando, nos inteiraremos melhor da realidade não só do Brasil, mas do mundo em que vivemos, dimensionando seus desafios monumentais.
Essa crise é só uma porta de entrada. Com inúmeras dobradiças.
Porta de entrada, inicialmente, para que a esquerda brasileira enfim ingresse no século XXI, fazendo o luto que ainda não fez, e que a esquerda no resto do mundo já está fazendo há vinte anos: dos erros estratégicos cometidos, das insuficiências encontradas na interpretação da História e do processo de progressão civilizatória da humanidade, dos modelos equivocados da luta política e ideológica que desenvolveu e das soluções econômicas que tentou implementar.
Gorbatchev, na década de 80, já dizia que se o socialismo real não pudesse oferecer condições de vida melhores do que as oferecidas pelo capitalismo, não teria qualquer condição de convencer as massas proletárias para lutar pelo seu advento.
Quer afirmação mais dura do que essa, proferida pelo principal líder soviético da época?
A esquerda brasileira está incrivelmente atrasada na consideração do desafio que a sociedade globalizada da informação e do conhecimento nos apresenta, nesse momento. Na verdade, nossos esquemas de referência teórica nos permitem ver mais claro o que vai acontecer daqui a duzentos ou trezentos anos, após os estertores do capitalismo tardio, do que nos aconselham sobre o que fazer nos próximos dez ou cinqüenta anos. Como enfrentar a Civilização da Anomia, nessa transição? Como equacionar a passagem para uma Civilização do Não-Trabalho, sem que vingue o propósito genocida de dois terços da humanidade pelo poder imperial do mundo contemporâneo?
Mas não é simples. Temos, em nossa cultura, o grave defeito de nos considerarmos sempre os melhores, os mais inteligentes e espertos, capazes de nos apropriarmos das idéias dos outros para, rapidamente, armarmos grandes e infalíveis soluções. Foi assim, por exemplo, com o único tiro de Collor de Mello, com suas trágicas conseqüências.
É preciso entender que a esquerda brasileira não está adiante da esquerda internacional: está tão frágil quanto ela, e também precisa, desesperadamente, de começar de novo, de melhor fundamentação teórica e de mais paciência no trabalho político de articulação da luta ideológica, e do comprometimento de nossa sociedade com a formulação de uma proposta civilizatória viável para a superação do capitalismo.
Há perguntas fundamentais que têm que ser remetidas ao debate público: como gerar oportunidades de atividade econômica, com o desemprego estrutural se agravando? Como combater a violência, administrar a justiça, educar melhor os nossos jovens, criar mais solidariedade social, oferecer melhor assistência de saúde? O voto deve ser obrigatório? Qual o melhor sistema eleitoral: proporcional, distrital, misto? Devemos ser presidencialistas ou parlamentaristas? Como tornar os impostos mais transparentes, fazer o cidadão participar mais diretamente das decisões sobre a aplicação dos recursos orçamentários? Como permitir que os cidadãos fiscalizem mais efetivamente os atos dos legisladores, dos ocupantes das funções executivas, dos juizes? Como nos favorecermos de nossa diversidade cultural para nos situarmos melhor no contexto internacional? Como proteger a Amazônia e nossos recursos naturais? E muitas, muitas perguntas mais.
Agora, é necessário um grande esforço para a criação de espaços interpelativos, capilarmente distribuídos por toda a parte, para que a prática do debate se torne integrante de nosso convívio social. Se isso for possível, poderemos desembocar, daqui a pouco, numa Assembléia Constituinte Não-Congressual, eleita a partir de uma proximidade maior entre eleitores e eleitos, devidamente equipada com recursos de assessoramento técnico e consulta popular para que possamos definir o que, fundamentalmente, nos falta agora: um projeto de país com o qual, no essencial, estejamos todos de acordo e pelo qual possamos juntar nossas forças para construir o futuro.
Enquanto isso –tenha certeza– o país vai continuar funcionando, o mundo vai continuar girando, a humanidade vai continuar caminhando, a História vai continuar sendo escrita. E por todos nós.

1 - voltar- Este artigo é extrato da parte final de outro artigo, uma revisão ampliada de minha participação no debate com o prof. Roberto Romano, intitulado “A crise política brasileira: qual é a porta de saída?” (também publicado neste site no endereço http://www.interpsic.com.br/saladeleitura/textos/crise brasileira-index.html ), debate este promovido pelo Curso de Introdução à Oratória e Integração Social do Mutirão Cultural da UBE — União Brasileira de Escritores no dia 18/09/2005, no Parque da Água Branca, em São Paulo. Este extrato foi publicado no “O Cometa Itabirano” nº 299, Cometa Editora, Belo Horizonte. Outubro 2005.

2 - voltar Filósofo e psicanalista, diretor do InterPsic S. C. Ltda, de São Paulo.